Sobre as relações entre cristãos e muçulmanos, Europa e Oriente Médio, simbolizado pelo resultado das invasões francesas do Egito em 1249, 1798 e 1956. Do livro No Caminho de Deus: Islã e Poder Político (1983), pág. 98-101.
Para melhor visualizarmos o impacto do Ocidente (sobre os muçulmanos), comecemos pelo paradigma da França e do Egito. O Egito foi atacado três vezes pela França e as consequências desses choques podem servir como símbolo das relações entre a Europa e o Islã como um todo.
Representação do Rei Luís IX da França. |
O primeiro ataque, caracterizando a conjuntura pré-moderna, ocorreu em 1248 quando o rei da França, Louis IX (mais conhecido como São Luís) chefiou a última expedição séria dos Cruzados com o intuito de tomar Jerusalém dos muçulmanos. Jerusalém se encontrava na época sob controle dos aiúbidas, dinastia radicada no Egito, quando Louis arquitetou um plano para capturar a cidade costeira de Damieta no Egito e devolvê-la logo em seguida em troca da cidade sagrada. As forças francesas tomaram Damieta em junho de 1249 e, animado com o sucesso, Louis cometeu o equívoco de invadir o interior do país e procurar destruir a dinastia aiúbida. O ataque foi um fracasso, Louis juntamente com um grande contingente de soldados franceses foram capturados em abril de 1250 e, como parte do acordo para o resgate, as forças francesas evacuaram Damieta. O rei Luís e suas tropas fugiram do Egito para a Síria.
Os cruzados e aiúbidas se enfrentaram de igual para igual. A tecnologia, os recursos e patamares culturais diferiram pouco, eles dispunham, a grosso modo, do mesmo poderio militar e as paixões religiosas motivavam os dois. Os franceses atacaram o Egito como cristãos devotos, com a intenção de tomar Jerusalém dos pagãos. Os aiúbidas reagiram à altura, pois se viam como defensores de Dar al-Islam.
Embora os dois lados tivessem um poder e ideologia correspondentes no século XIII, essa paridade ruiu posteriormente. Os europeus do Ocidente aproveitaram seu potencial econômico, recursos científicos e instituições sociais para desenvolver sua civilização como nunca antes. Este processo, conhecido como modernização, começou no século XVI, prosseguindo a todo vapor até os dias de hoje. Dois aspectos da modernização nos preocupam mais: poderio militar e cultura política. A força militar não foi fruto apenas de novas armas e estratégias, mas também de outras circunstâncias. Os governos europeus amealharam maior estabilidade, resultado das eleições e dos parlamentos, conquistaram mais lealdade dos cidadãos por intermédio de partidos políticos e de novas ideologias, proliferação de escolas públicas, universidades, publicações em massa, os meios de comunicação premiaram a Europa com enormes regalias culturais, empresas comerciais, sociedade limitada e a bolsa de valores reforçaram a eficácia das instituições capitalistas, estradas pavimentadas, rede de canais, estradas de ferro e o telégrafo, tudo se encaixou. Os europeus eram os mais fortes porque eram os mais civilizados, mais ricos e os mais saudáveis do planeta.
Na mesma época em que a Europa se tornou tão poderosa, sua cultura passou por um processo radical de secularização. O século XVIII contemplou uma reorientação que deixou de lado o cristianismo voltando-se para o florescimento de uma civilização não religiosa, fazendo com que o que os francos tinham a oferecer aos não cristãos ficasse muito mais atraente. Os muçulmanos que procuravam aprendizado encontraram respostas nas ideias neutras provenientes da Europa no tocante à religião, pela primeira vez eles podiam aprender com a Europa sem ter que se converter. O relacionamento dos muçulmanos com os francos mudou radicalmente à medida que a cultura europeia foi se metamorfoseando de rival religiosa para ideologia sedutora.
Napoleão Bonaparte. |
A Revolução Francesa sintetizou tanto as mudanças militares quanto as culturais: enquanto os exércitos franceses esmagavam seus oponentes, as ideias francesas seduziam enormes contingentes de seguidores em toda a Europa. Os muçulmanos também se envolveram quando os franceses desembarcaram no Egito pela segunda vez, cinco séculos e meio depois de São Luís. Em 1º de julho de 1798 eles apareceram, sem mais nem menos, na linha costeira perto de Alexandria. Sob o comando de Napoleão Bonaparte, que via a expedição principalmente como meio de manter a si mesmo e as suas tropas ocupadas, a missão era ocupar o Egito e como consequência cortar o caminho dos britânicos que se encontravam na Índia. Os soldados franceses imediatamente capturaram Alexandria, depois, em um espaço de três semanas, esmagaram as forças dos mamelucos nos arredores de Cairo. As tropas de Napoleão não encontraram nenhuma resistência importante em seu blitzkrieg e facilmente assumiram o controle do Vale do Nilo. Somente uma potência europeia tinha condições de resistir a esse poderio implacável e, de fato, foi o que aconteceu dias mais tarde, em 1º de agosto quando navios britânicos destruíram a frota francesa atracada no litoral de Alexandria. As forças francesas, isoladas, apartadas da Europa, permaneceram no Egito por mais três anos até serem obrigadas pelos britânicos a evacuarem, em outubro de 1801.
A disparidade no tocante ao poder militar entre as tropas francesas e egípcias era descomunal, o exército de Napoleão gozava de total supremacia em todos os aspectos, incluindo tático, estratégico, de armamento, comunicação, hierarquia de comando, disciplina e provisionamento. Ao que tudo indica, a disparidade quanto ao enfoque político era ainda maior. Os egípcios ainda consideravam o inimigo como cristão e como inimigo religioso, a única reivindicação de legitimidade do governo mameluco no Cairo era a possibilidade de manter os kafirs e aplicar a Sharia.
Diferentemente, as forças francesas, virtualmente, não deram a mínima no que diz respeito à dimensão religiosa do conflito. Napoleão se considerava não um conquistador cristão, mas um amigo do Islã e dos egípcios oprimidos. Ao chegar ao Egito, ele distribuiu um manifesto em árabe proclamando os governantes mamelucos como os verdadeiros inimigos dos egípcios. Para cativar apoio popular, ele implantou formas francesas de governo local e governou o país tendo em mente o bem-estar dos egípcios. Além disso, em que pese a pouca paciência de Napoleão com o cristianismo, ele mostrou apreço e interesse pelo Islã. Essa tolerância não se limitava ao próprio Napoleão, o Barão J.F. Menou, que assumiu o cargo de comandante das forças expedicionárias francesas em junho de 1800, se converteu ao Islã, ficando conhecido como Abdulla Menou.
Os exércitos de Napoleão representavam uma nova força na política, um exército popular dirigido por líderes que afirmavam representar seu povo a serviço de uma ideologia política. O cristianismo e o Islã eram irrelevantes para os revolucionários que lutaram pela glória da França e pela liberdade, igualdade e fraternidade. O interesse nacional e o fervor ideológico contavam infinitamente mais do que a religião. De um lado as forças egípcias haviam mudado muito pouco quanto aos recursos militares e quanto à visão de mundo ao longo dos séculos, do outro, o exército francês evoluiu em ambos os aspectos. Contudo esse abismo de poder não podia continuar, vendo o que os europeus podiam fazer, os egípcios logo passaram a imitá-los. O primeiro governante muçulmano do Egito após a invasão francesa foi Muhammad 'Ali, oficial otomano de origem albanesa, destacado com tropas para o Egito. Apreciando a desenvoltura da ocupação francesa, ele logo reconheceu que as técnicas modernas poderiam aumentar seu próprio poder. Com isso em mente, ele embarcou em um arrojado programa com o intuito de alçar o potencial militar e econômico do Egito de olho no patamar europeu. Recrutamento, treinamento militar, normas de treinamento, táticas e estruturas de comando foram copiados dos franceses, assim como levantamento de território, planejamento hidráulico, controle de doenças, industrialização e tributação. Muhammad 'Ali trabalhou para que as técnicas mais avançadas fossem implantadas, enviando estudantes egípcios para a França e empregando europeus no Egito. Ele também patrocinou outras inovações, como uma imprensa árabe, uma escola de medicina e um jornal estatal.
Primeiro Ministro da França Guy Mollet. |
As mudanças iniciadas por Muhammad 'Ali foram seguidas por seus sucessores que mergulharam em esforços concentrados para aprenderem métodos europeus para modernizarem o país. Os efeitos dessa modernização puderam ser vistos em 1956, quando a França invadiu o Egito pela terceira e última vez. Este ataque teve como pano de fundo dois acontecimentos: o presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, nacionalizou o canal de Suez em julho de 1956, causando consternação nos acionistas franceses e britânicos, em seguida, em 29 de outubro, as forças israelenses invadiram a península do Sinai com o intuito de dar um basta aos ataques que emanavam daquela região. Os paraquedistas franco/britânicos desceram na cidade costeira de Port Said em 5 de novembro, aparentemente para protegerem o canal dos efeitos dos combates entre israelenses e egípcios, mas na realidade o objetivo era cooperar com Israel. No dia 7 de novembro as tropas francesas e britânicas avançaram sobre Ismaília, trinta milhas ao sul de Port Said. Como em 1798, as defesas egípcias não ofereceram resistência, mas desta vez o governo do Cairo mobilizou apoio internacional, especialmente americano e soviético, forçando os europeus a suspenderem o avanço. No final de dezembro de 1956, todas as tropas estrangeiras já tinham sido evacuadas. Mais uma vez, os franceses deram com os burros n'água.
Em 1798, somente a Grã-Bretanha tinha condições de enfrentar a França. Em 1956 os dois juntos se deram mal. O Egito fez grandes progressos. Em 1956 o governo afirmava representar a nação e adotar ideologias não religiosas derivadas de raízes ocidentais, entre elas o socialismo, neutralidade, democracia e justiça social. Surgiram no Egito líderes com a intenção de promover os interesses nacionais e deixar de ser brinquedo de estrangeiros. Conotações hostis cristãs/muçulmanas ainda estavam presentes no conflito de Suez, mas já não eram explícitas, nem negativas, isso de ambos os lados, as diferenças eram sobre direitos nacionais, economia e relações com as superpotências.
Três vezes em 700 anos, eventos semelhantes: a França invadiu o Egito, gozou de sucessos iniciais, penetrou até o interior do país, foi derrotada, bateu em retirada, deixando o país de mãos abanando. Mas, debaixo das semelhanças das expedições de Damietta, Alexandria e Port Said, estavam em andamento mudanças cruciais nas relações entre os dois países. Em 1248 tanto os franceses quanto os egípcios viam o confronto em termos religiosos, os franceses evoluíram para se tornarem uma potência militar e para uma abordagem ideológica quanto à política que chocaram os egípcios em 1798 e, em 1956 os egípcios aprenderam o suficiente sobre os meios modernos de superar os franceses na política internacional. As três invasões simbolizaram a paridade pré-moderna, o salto europeu e a recuperação dos muçulmanos. A esmagadora derrota em 1798 e outras derrotas do gênero, como em Dar al-Islam, obrigaram os muçulmanos a observarem cuidadosamente os franceses e aprenderem com eles, um século e meio mais tarde, eles quase chegaram lá, visto que, embora ainda inferiores no tocante ao poderio, eles assimilaram ideias europeias.
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