O "gosto do Islã se encontra incontestavelmente por onde ele passa".
O Alcorão proíbe os muçulmanos de comer, beber, fumar ou ter relações sexuais entre o nascer e o pôr do sol durante o mês do Ramadã. Mas o Alcorão não diz nada sobre os aspectos do Ramadã no século XXI: reduzidos horários de expediente, festas noite adentro, guloseimas de festa, programas especiais de TV, férias em países com regimes menos rigorosos ou fugas para climas mais frios com menos horas de luz do sol. O Alcorão sabe menos sobre "o efeito do Ramadã no varejo e na saúde. O jejum, observa o chefe da Emirates Diabetes Society, faz com que os muçulmanos praticantes se exercitem menos e nas noites festivas "tendam a comer demais ao quebrarem o jejum", quando em geral consomem "comida pesada, gordurosa e rica em calorias." Em um levantamento saudita, 60% dos entrevistados relataram excessivo ganho de peso após o Ramadã.
Ironicamente, o Ramadã é um mês de jejum e de excessos. Acima, mais de mil moradores do bairro de Matariya, no Cairo, juntos quebrando o jejum em 31 de maio de 2018. |
Nenhum desses costumes modernos são obrigações religiosas, mas todos decorrem logicamente das normas do Islã. Juntas, elas formam a experiência vivida no Ramadã. Conforme o exemplo sugere, ao passo que o Islã tende a ser visto em termos de seus textos e preceitos, também é algo muito maior, uma mistura de tradições e inovações. No agregado, eles formam a civilização do Islã.
"Islamicado"
Nos anos de 1960 o historiador Marshall GS Hodgson cunhou o termo islamicado para retratar esse abrangente fenômeno. Segundo a definição, "islamicado" não se refere
diretamente à religião, ao Islã em si, mas à mistura social e cultural historicamente associada ao Islã e aos muçulmanos, tanto entre os próprios muçulmanos como até mesmo entre os não muçulmanos.
Ele modelou o emparelhamento "Islã-islamicado" com "Itália-italiano". Este conceito ajuda muito a entender o impacto sutil do Islã na vida cotidiana.
Os costumes "islamicados" contam com três fontes principais: o Alcorão e a hádice (ditos e ações de Maomé, profeta do Islã), que determinam proibições generalizadas, como caridade ou tratar os cães como seres impuros, "cercas de proteção" (ihtiyat), que reduzem a possibilidade de transgressão inadvertida ao acrescentar normas secundárias, como por exemplo, a burca (vestimenta feminina que cobre o corpo inteiro, da cabeça aos pés), assume um significado ambíguo Versículo do Alcorão (24.31) sobre o recato feminino e, por precaução, transforma as mulheres em tendas ambulantes. Resumindo, uma mentalidade generalizada, pode virar uma prática padrão, as exortações do Alcorão sobre a superioridade dos muçulmanos sobre os não muçulmanos foram codificadas no estatuto dhimmi, cidadania de segunda categoria disponível aos judeus e cristãos que reconhecem a autoridade muçulmana.
Os costumes "islamicados" combinam leis islâmicas abstratas (a Shari'a) com a verdadeira prática muçulmana. Em outras palavras, os requisitos formais da religião fornecem apenas a base estreita para uma estrutura muito mais ampla de costumes que estendem os ditames do Islã, estendendo-os de maneiras inesperadas, não planejadas e às vezes surpreendentes.
Assim sendo, a anual peregrinação a Meca, o haj islâmico, se transformou em um ponto de encontro sui generis que serviu de ponto de troca para os muçulmanos. Pode se tratar de ideias, como ocorreu no século XVIII, quando visões islâmicas se espalharam de Meca para Marrocos, África Ocidental, Líbia, noroeste da Índia, Bengala, Indonésia e China. Pode se tratar de comércio, com artigos de luxo como marfim ou seringueiras e arroz. Enfim, pode se tratar de doenças, como meningococo, piodermite, diarreia infecciosa, infecções do trato respiratório e poliomielite.
Muitas trocas acontecem todos os anos no haj. |
A proibição corânica de representações artísticas da forma humana levou ao desenvolvimento de motivos artísticos baseados em desenhos de vegetais e geométricos e na escrita árabe. O resultado é um estilo discreto e reconhecível. Folheie casualmente um livro que mostra tesouros artísticos de todo o mundo, observa o historiador Jorge Marçais e intuitivamente se verá que artefatos de fabricação muçulmana, como um painel de parede da Espanha, um Alcorão ilustrado do Egito ou uma tigela de cobre gravada do Irã, compartilham características comuns: "sem condições de identificar em que país qualquer destes objetos foi feito, não seria possível, nem por um instante, atribuí-los a qualquer lugar que não seja o mundo muçulmano."
Mundo afora, o álcool é consumido para comemorar, consolar ou distrair, os muçulmanos porém, por conta da proibição islâmica, se voltaram para o equivalente, porém abstêmico açúcar. O consumo de açúcar entre os muçulmanos, historicamente, portanto, pendeu a ser alto. Conforme aponta Josie Delap,
se der para tomar umas e outras em Dubai, é só ir até o bar de milk-shakes e ficar chapado tomando uma mistura de sorvete de chocolate. Após o jantar, o chá adoçado toma o lugar do aperitivo. Barracas de sucos e cana-de-açúcar substituem pubs e bares nas esquinas.
O açúcar virou parte integrante das festas religiosas: "no Ramadã há uma festa noturna na qual os doces desempenham um papel importante. Na Turquia, o Eid al-Fitr, festa para celebrar o fim do Ramadã, é conhecido como Şeker Bayrami, festa dos doces."
A proibição do consumo de carne suína é tanto ritualística quanto islâmica, mas as consequências são geográficas e "islamicadas". Não consumir carne de porco levou ao desaparecimento de porcos e isto, segundo o geógrafo Xavier de Planhol explica, abriu "áreas arborizadas aos ovinos e caprinos, provocando indiretamente o catastrófico desmatamento. Esta é uma das cruciais razões da escassa paisagem particularmente evidente nos territórios mediterrânicos dos países islâmicos". Ou então, conforme observou o primeiro presidente de Israel, Chaim Weizmann: "o árabe é frequentemente chamado de filho do deserto. Seria mais correto chamá-lo de pai do deserto". Olhando para o Mediterrâneo, a região ao redor de Marsala, oeste da Sicília, o índice pluviométrico anual é de 449,58 mm, mas é visivelmente mais verde do que a vizinha região ao redor de Túnis, cuja média é de 508 mm por ano. Observe a evolução das restrições dietéticas do Alcorão comparadas à desertificação, o comando da escritura sagrada não tinha a intenção de causar danos ecológicos, mas causou.
As cabras do Marrocos que trepam em árvores devoram tudo o que cresce nas árvores. |
Além dessas influências um tanto aleatórias, as práticas "islamicadas" fizeram muito no sentido de impedir os muçulmanos de se modernizarem. Elas afetaram três tipos de relacionamentos: pessoais, intra-muçulmanos e não muçulmanos.
Relações Pessoais
As normas islâmicas têm muito a dizer sobre as relações entre homens e mulheres, os padrões "islamicados" se estendem amplamente na maioria dos aspectos da vida familiar.
Os textos islâmicos assumem que as mulheres desfrutam tanto ou mais de relações sexuais do que os homens. Consequentemente, o Islã retrata o desejo feminino como transmutador de mulheres em predadoras e homens em presas. Esta suposta luxúria feminina é uma força poderosa para bagunçar o coreto, o que dá às mulheres um poder sobre os homens que rivaliza o poder de Deus. Assim sendo, a sexualidade feminina ameaça a ordem social, fomentando um enorme esforço para contê-la. O imperativo para reprimir a sexualidade feminina explica uma série de costumes "islamicados" destinados a separar e minimizar o contato entre os sexos: cobertura do rosto e do corpo das mulheres, confinamento das mulheres em seus bairros residenciais (harém), separação social inclusive em elevadores ou restaurantes e uma fraca relação marido/mulher relativa ao forte vínculo mãe/filho.
Dois aspectos do combate ao desejo feminino merecem menção especial. Primeiro, a mutilação genital feminina (MGF) tolhe diretamente a sexualidade das mulheres, tornando a relação sexual dolorosa. Além de infinitesimais exceções na América Latina, ela ocorre somente entre os muçulmanos e seus vizinhos não muçulmanos, como os coptas. Outrora restrita a lugares como Somália, Iraque e Índia, agora expande para o Ocidente, como por exemplo, Suécia, Reino Unido e Michigan.
A arte do arco-e-flecha é o único esporte disponível para quem usa a nicabe. |
A poligamia é islâmica, mas as implicações são "islamicadas". As esposas que temem que seus maridos se casem com outra mulher sofrem de ansiedade permanente, inversamente, os maridos desfrutam de imensa autoridade no casamento. A poligamia também leva ao que é chamado de excesso de homens, ou seja: homens que permanecem solteiros por conta das mulheres estarem comprometidas em casamentos polígamos. (O infanticídio feminino distorce ainda mais o equilíbrio entre os sexos, seja matando os recém-nascidos grosseiramente o que ocorria nos tempos de outrora ou por intermédio de exames de ultrassom e aborto hoje em dia.) A presença demasiada de homens leva ao aumento da criminalidade e violência, já os governantes ansiosos para se livrarem dessa população inquieta ficam mais propensos a fazerem a guerra.
O sistema de tutela masculina (wilayat ar-rijal) dá a um parente próximo do sexo masculino (avô, pai, irmão, marido, primo, filho, até mesmo neto) a autoridade para tomar as decisões mais importantes de uma mulher no decorrer da sua vida, como sair de casa, escolaridade, assistência médica, viajar, trabalhar e casar. Neste espírito, há casamentos tradicionais muçulmanos que ocorrem entre dois homens, o noivo e o guardião da noiva. Embora apenas o governo saudita tenha imposto a tutela como estrutura legal, a instituição "islamicada" pode ser encontrada privadamente em inúmeras sociedades muçulmanas, onde a prática não só infantiliza as mulheres, como também induz a abusos de poder.
O Alcorão sanciona (4:22-24, 33:50), mas não encoraja casamentos entre primos de primeiro grau. Os costumes tribais e a prática histórica fazem com que ela seja disseminada nas sociedades muçulmanas, pois retém a honra, a fertilidade e os recursos financeiros das filhas dentro da família. As consequências genéticas desses casamentos ao longo de cinquenta gerações foram e continuam sendo incalculavelmente prejudiciais, levando a limitado desempenho cognitivo e a distúrbios como talassemia, anemia de célula, atrofia muscular espinhal, diabetes, surdez, mudez e autismo. Segundo uma estatística, os paquistaneses étnicos no Reino Unido representam 3% dos nascimentos, mas 30% das crianças com doenças genéticas.
Não há nada na doutrina islâmica que sancione assassinatos em nome da honra, que nada mais são do que assassinatos de familiares (geralmente de mulheres jovens, ocasionalmente também de mulheres mais velhas ou de homens) para limpar a mancha pública na reputação da família. A prática surgiu a partir de um intenso foco na virgindade e nas rigorosas restrições quanto à conduta sexual, misturada à ênfase exacerbada na honra da família. O resultado é uma epidemia de assassinatos, que já estão ocorrendo também no Ocidente. Além dos crimes propriamente ditos, o medo dessa punição impacta enormemente no psicológico das mulheres muçulmanas.
Ao fim e ao cabo e que nada tem a ver com as relações homem/mulher: órfãos têm um status na lei islâmica (chamada de kafala) que deriva de um incidente ocorrido na vida de Maomé (que se casou com a ex-mulher de seu filho adotivo). Kafala proíbe órfãos de se tornarem parte da sua família adotiva. Embora não houvesse a intenção de levar a um status inferior, o resultado foi o seguinte: os órfãos muçulmanos de hoje continuam sendo discriminados, mesmo por muçulmanos que vivem no Ocidente.
Relações Intra-muçulmanas
O Islã cria altas expectativas, nada realistas, em relação aos seus dirigentes (senão vejamos: ao permitir que eles tributem apenas a taxas impraticavelmente baixas), o que quase sempre faz com que aqueles dirigentes desrespeitem a Shari'a. Em consequência disto, os súditos muçulmanos repudiam seus dirigentes, evitam trabalhar para eles. Nos tempos pré-modernos, essa relutância criou uma crise de pessoal que impeliu os governantes muçulmanos de buscarem equipes administrativas e militarem fora de suas fronteiras. O método preferido era sistematicamente adquirir, treinar e distribuir escravos vindos de lugares como África, Cáucaso e Bálcãs. Na realidade, administradores e soldados servis se tornaram um esteio da política "islamicada" da Espanha a Bengala no milênio entre 800 e 1800 d.C. A relutância histórica continua, conforme ficou patente nas recentes manifestações antigovernamentais em países de maioria muçulmana.
Os janízaros otomanos formavam o corpo do exército de soldados escravos mais importante e mais longevo. |
O Islã não dispõe de regras para transição pacífica de poder nem de diretrizes para a sucessão, que ainda estão em vigor, sunitas e xiitas ainda discordam quanto ao legítimo sucessor de Maomé e problemas requentados em relação à sucessão dinástica aumentaram a instabilidade política da "islamicada". Nos tempos pré-modernos, a falta de um sistema como a primogenitura conduziu a situações exóticas como escravos mamelucos que sucederam seus senhores como dirigentes no Egito e a institucionalização do fratricídio real otomano. Já em tempos modernos, a falta da democracia contribuiu para que a Síria tivesse quatro presidentes em um único ano (1949), a caótica árvore genealógica de dirigentes sauditas e ditadores árabes que tentam fazer com que seus filhos se tornem seus sucessores.
A Síria teve quatro presidentes em 1949. |
As regras do Islã refletem suas origens em um ambiente tribal e por mais remota que a Arábia esteja do século VII em relação a uma megalópole como Cairo ou Istambul de hoje, imperativos tribais continuam sendo uma força considerável. O código tribal islâmico que se baseia na solidariedade da família e do clã poderia ser resumido pelo ditado retrógrado: "eu contra meu irmão, eu e meus irmãos contra meus primos, eu, meus irmãos e meus primos contra o mundo". Ou então na formulação de Osama bin Laden, "quando as pessoas veem um cavalo forte e um cavalo fraco, por natureza, elas vão preferir o cavalo forte." Esta mentalidade entra em conflito com as ideias modernas de individualismo, valores universais e estado de direito. Isso leva a instituições anêmicas, baixo desempenho econômico, fragilidade militar e tirania.
Outros padrões "islamicados" incluem o estabelecimento de dinastias por meio da conquista, não através da mudança interna, poder que conduz à riqueza, não o contrário, fragilidade dos governos municipais e a consequente regulamentação inadequada das cidades e leis decorrentes de decisões ad hoc, não via legislação formal.
Relações com Não Muçulmanos
As escrituras islâmicas estimulam uma sensação de superioridade muçulmana, um desdém pela fé e civilização dos outros e a aversão ao domínio não muçulmano. Em tempos modernos, a estrutura mental "islamicada" impede que os muçulmanos acabem com a prática da decapitação e escravidão, aprendam com o Ocidente, ingressem no sistema econômico global ou lidem de forma realista com os problemas.
Os versículos, suratas (8:12 e 47:4) do Alcorão sancionam a decapitação. A tradição islâmica registra que Maomé decapitou setecentos judeus do sexo masculino da tribo Banu Qurayza, estabelecendo assim o precedente e o modelo para futuras gerações de muçulmanos. Este "islamicado" costume tem o duplo objetivo de instigar medo e obter vantagem política. Os principais países, incluindo os almorávidas, otomanos e sauditas seguiram o exemplo, usando essa forma de punição tanto aos não muçulmanos quanto aos muçulmanos. De uns tempos para cá, mais notoriamente, o Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ISIS) reviveram essa prática.
O Islã, a exemplo da maioria das civilizações pré-modernas, permitia a escravidão, hoje, no entanto, a prática continua sendo um expressivo fenômeno existente apenas e tão somente no meio muçulmano. Os regulamentos que se originam a partir do longínquo Alcorão e da Suna de outrora ainda persistem porque se encaixam na sensação "islamicada" de superioridade muçulmana. A escravidão é uma instituição "islamicada" tão central que uma figura religiosa saudita afirma que rejeitá-la equivale a apostasia do Islã. Um levantamento constatou que ela existe em oito países de maioria muçulmana, no Estado Islâmico (ISIS) e em menor grau em outros lugares. A escravidão recentemente também apareceu entre os muçulmanos que vivem no Ocidente dando origem a frequentes escândalos envolvendo uma realeza, um diplomata e até mesmo um estudante acusado de ser dono de escravos.
O ISIS revitalizou a escravidão, como mostra a foto acima de mulheres e meninas yazidis. |
Uma amarga e mais ou menos equivalente rivalidade muçulmana/cristã começou logo nas origens do Islã e continuou por um milênio. Quando os cristãos europeus passaram à frente dos muçulmanos conquistando a maioria dos territórios de maioria muçulmana entre 1764 e 1919, os muçulmanos acharam particularmente complicado aprender com os não muçulmanos. Os japoneses distantes e fechados não conseguiam "aprender holandês a contento", os otomanos, no entanto, mais próximos, demoraram quase três séculos até introduzir a prensa móvel. Esta lentidão e relutância levaram ao padrão "islamicado" dos muçulmanos de ficar para trás, um padrão para lá de evidente onde quer que vizinhos muçulmanos e não muçulmanos entrem simultaneamente em contato com os europeus, como por exemplo, na ex-Iugoslávia, Nigéria, Líbano, Índia, Malásia e Indonésia.
Viver de maneira plenamente islâmica requer a implementação integral da Shari'a, que por sua vez requer um dirigente muçulmano praticante, por outro lado, viver sob o domínio não muçulmano requer emigração ou resistência. Assim, os muçulmanos são os habitantes mais rebeldes quando não muçulmanos estão no poder. Na era moderna, isso deu dor de cabeça para franceses na Argélia, italianos na Líbia, gregos na Turquia, israelenses em Gaza, britânicos no Sudão, etíopes na Eritreia, americanos no Iraque, soviéticos no Afeganistão, indianos na Caxemira, birmaneses em Rakhine, tailandeses em Pattani, chineses em Xinjiang e filipinos em Mindanao. A fúria contra os conquistadores estrangeiros muitas vezes impediu aprender ou cooperar com eles, simbolizado pelos saqueadores de Gaza que destruíram as estufas que os israelenses haviam expressamente deixado para trás para que eles pudessem usá-las.
A doutrina islâmica permite aos não muçulmanos que aceitarem o domínio muçulmano (dhimmi) certo grau de autonomia. Isso levou a um padrão de comunidades religiosas que preferiam viver à parte em suas esferas familiares e sociais, tanto nas residências como nos locais de trabalho e seguirem os seus próprios códigos de conduta. Tal separação encoraja relações intercomunitárias hostis e impede o desenvolvimento de um sentimento de solidariedade ou de identidade nacional. Decorrente, não obstante, de preceitos islâmicos, esses hábitos de separação ganharam vida própria "islamicada", mantendo-se mesmo em lugares não mais governados por muçulmanos (por exemplo, Chipre, Líbano, Israel e Cisjordânia).
Uma mistura de condenação do Alcorão a pagamento de juros e o desejo de permanecer distante de não muçulmanos inspirou Abul A'la Mawdudi, líder islamista do Sul da Ásia, a inventar a economia islâmica na década de 1930. Enxovalhado como "enorme trapaça" por Timur Kuran da Duke University, a inovação incentiva a corrupção, fortalece o islamismo e inibe a integração muçulmana na economia internacional.
A hostilidade das escrituras sagradas em relação aos não muçulmanos gera a suposição de que os não muçulmanos abrigam uma hostilidade paralela em relação aos muçulmanos. Na era moderna, essa imagem espelhada criou uma suscetibilidade às teorias da conspiração que tiveram muitas consequências práticas, como a guerra Irã/Iraque, suspeitas de que as vacinas contra a poliomielite tornam as crianças estéreis, fazendo da poliomielite um flagelo quase que exclusivamente muçulmano e com que os muçulmanos ficassem com o pé atrás em relação aos tratamentos contra a COVID-19, realizados no Ocidente.
Observações
Graças a um conhecimento muito maior em relação ao Islã, inclusive a terminologia e conceitos, é o momento certo para apresentar ao público o neologismo de Hodgson e a ideia "islamicada" ao público.[1] Isto ajudaria a entender a civilização do Islã, a história dos muçulmanos e os desafios de hoje.
Às vezes os costumes "islamicados" são adotados por vizinhos não muçulmanos, como as mulheres cristãs no Paquistão que cobrem as cabeças, homens judeus no Iêmen que se casam com várias mulheres e os exemplos mencionados acima de coptas que praticam a MGF e padrões de vida independente em vários países. O patriarca melquita Gregório III Laham articulou em 2005 a essência dos sentimentos "islamicados":
nós somos a Igreja do Islã. O Islã é o nosso meio, o contexto em que vivemos e com o qual estamos historicamente atrelados... Nós entendemos o Islã por dentro. Quando ouço um versículo do Alcorão, ele não me soa estranho. É uma expressão da civilização a qual eu pertenço.
Alguns costumes "islamicados" são exclusivos dos muçulmanos e de seus vizinhos não muçulmanos. A decoração arquitetônica conhecida como muqarnas (um favo de mel côncavo de arcos de ferradura) é encontrada somente em edificações construídas para muçulmanos. Na mesma linha, o uso sistemático de escravos como soldados e a dependência na hawala, corretores para transferências de dinheiro são condutas específicas relacionadas aos muçulmanos. Nada nas escrituras islâmicas exige esta específica ornamentação, forma de recrutamento militar ou instrumento financeiro, todas elas surgiram de uma mistura de sensibilidades islâmicas e necessidades muçulmanas.
As muqarnas são uma decoração exclusivamente "islamicada" encontrada em muitas regiões do planeta. |
As práticas "islamicadas" não são estáticas, elas podem mudar com o passar do tempo. A escravidão militar acabou há dois séculos, quando começaram as teorias da conspiração. A MGF está sendo combatida pela primeira vez, enquanto a poliomielite só virou uma doença distintamente muçulmana neste século.
Os hábitos sociais "islamicados" são particularmente prejudiciais à saúde: doenças que circulam durante o haj, passivo estilo de vida durante o Ramadã, MGF, casamento entre primos e vestimentas que cobrem o corpo inteiro. Felizmente, nada disso é exigido dos muçulmanos praticantes.
Concluindo, para os muçulmanos se modernizarem em sua plenitude, não é necessário apenas rejeitar preceitos islâmicos ultrapassados (poliginia, tributação quixotesca, jihad violenta), como também os atributos "islamicados"(casamento entre primos, códigos tribais, intolerância contra os não muçulmanos). As práticas "islamicadas" tornam o caminho a seguir mais longo e mais difícil do que geralmente se percebe. Mas, se os muçulmanos descartassem as regras e práticas históricas, esse caminho poderia ser percorrido com sucesso. A escolha existe.
Daniel Pipes (DanielPipes.org, @DanielPipes) é o presidente do Middle East Forum. ©2021 Todos os direitos reservados.
[1] eu dediquei muita atenção à ideia "islamicada" em livros publicados em 1981 e 1983. Contudo, para me dirigir a um público maior, abandonei o termo.
Related Topics: Dhimmitude, Islã, Lei Islâmica (Shari'a), Meca e Medina, Sexo e relações entre os sexos
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