Manchete no W.T.: "estudo de caso sobre Vladimir Putin e Saddam Hussein: os tiranos prestam atenção em seus asseclas?"
Três dias antes do presidente da Rússia, Vladimir Putin, ordenar a invasão da Ucrânia, ele reuniu o alto escalão da segurança para televisionar uma farsa. No ato, ele perguntou a cada um se eles aprovavam seu plano de reconhecer duas áreas do leste da Ucrânia como estados independentes. Visivelmente constrangidos e por vezes desconcertados, todos diligentemente se curvaram à vontade de seu chefe.
Putin em reunião com seu conselho de segurança em 21 de fevereiro de 2022. |
Mas nem sempre tem que ser assim quando um brutal e totalitário ditador se reúne com seus conselheiros para conversar sobre um assunto importante, principalmente se a conferência ocorrer a portas fechadas. Neste caso, eles podem dizer o que pensam e influenciar sua decisão.
Sabemos disso porque se trata de um acontecimento raro, senão único, registrado numa gravação de uma reunião dessa natureza. O evento ocorreu em julho de 1986 em Bagdá sob os auspícios do, na época, homem forte do Iraque, Saddam Hussein. Amatzia Baram e Ban al-Maliki lembram o episódio em um recente artigo publicado no Journal of the Middle East and Africa, intitulado "Speaking Truth to Power in a Dictatorship: Secular Ideology versus Islamic Realpolitik - A Fierce Dispute in Saddam's Iraq" (Falar a verdade ao Poder numa Ditadura: Ideologia Secular versus Realpolitik Islâmica - Um Feroz Atrito no Iraque de Saddam). Nenhum regime do Oriente Médio, observam eles, "nos deixou um documento tão detalhado e vibrante de um importante debate, no cerne de um regime autocrata, sobre um assunto tão importante".
A esta altura do governo de Saddam, explicam os autores, "os debates entre os membros do alto escalão da liderança às vezes ainda podiam ser até certo ponto livres". Consequentemente, "os líderes do partido ainda podiam dizer, sem rodeios, a verdade ao detentor do poder, a portas fechadas". O debate ilustra, conforme escrevem Baram e Maliki, "a tensão entre ideologia e prática em um regime ideologicamente ditatorial e o surpreendente grau de liberdade de opinião".
Saddam Hussein presidindo uma reunião (em 14 de novembro de 2002). |
O que estava em jogo era uma questão crucial. O partido Ba'th, em nome do qual Saddam governava, insistia no secularismo na vida pública. Mas em 1986, o islamismo havia conquistado um apoio tão abrangente que ele sentiu a necessidade urgente de encarar o desafio e abriu um diálogo com a Irmandade Muçulmana (IM) do Egito e do Sudão. Ele convocou uma reunião de uma hora e meia com seus assessores para que endossassem a mudança. A presença do idoso Michel Aflaq, cofundador cristão do partido Ba'th, tornou a discussão mais delicada. Aflaq, dotado de considerável poder e prestígio, obviamente queria que o secularismo continuasse por cima.
O episódio mais dramático da reunião ocorreu depois que Saddam explicou sua proposta à iniciativa quanto à Irmandade Muçulmana. A esta altura, Tariq Aziz, ministro cristão das relações exteriores, entrou na discussão. Aziz ouviu argumentos concordando com Saddam, mas não sabia que o próprio Saddam já havia levantado a ideia do diálogo com a IM. De modo que, Aziz entrou de supetão, dedicando um discurso de 14 minutos no sentido de se posicionar contra tal mudança. Ele chegou a usar o suprassumo da arma retórica, citando as palavras de Saddam, para protestar veementemente à acomodação: "o próprio camarada Saddam disse claramente..."
O relato dos autores:
Fora uma curta interrupção de quatro segundos, não se ouviu nenhum pio enquanto ele discursava. Os participantes ficaram perplexos e paralisados de tanto medo, pois devem ter concluído que Aziz não sabia que estava atacando o chefe. Eles também estavam cientes do apurado senso de honra de Saddam: opor-se a ele em um fórum daquela natureza era no mínimo arriscado... Aziz poderia facilmente ter cometido perigoso equivoco. Até que ponto ele iria?
Extraordinariamente, Saddam respondeu a esse antagonismo não dando um tiro em Aziz no ato e sim mostrando deferência a ele e a seus dois aliados (sendo um deles Aflaq). Conforme explicam Baram e Maliki: "ao fim e ao cabo, os três opositores forçaram Saddam a recuar... em virtude do ataque de Aziz à sua proposta. Saddam percebeu que a discórdia havia entrado numa fase potencialmente perigosa. Ele viu que se não agisse rápido seus camaradas poderiam suspeitar que ele estava prestes a abandonar os princípios básicos do Ba'th." Surpreso, ele modificou a recomendação anterior, passou a mão na cabeça de seus críticos e minimizou o diálogo com a IM.
Monstros eufóricos: Saddam Hussein (esquerda) e Michel Aflaq em 1979. |
Três anos mais tarde, quando a IM assumiu o poder no Sudão, Saddam a apoiou, tornando sua concessão de 1986 em coisa de curta duração. Ainda assim, o fato de seus subordinados terem exercido tamanha influência sobre ele mostra como um déspota às vezes acata a vontade de seus conselheiros. A gravação revela um Saddam "em desacordo com a generalizada percepção de um tirano incontestável incapaz de tolerar qualquer dissidência e tomar suas decisões de forma arbitrária e unilateral".
Voltando ao presente, a peça de cenário televisionada de Putin pode ter sido precedida por um debate igualmente genuíno em particular sobre a política em relação à Ucrânia. Não sabemos se ele está tão isolado e tão impulsivo quanto parece. Putin poderia ser apenas o líder da matilha.
Daniel Pipes (DanielPipes.org, @DanielPipes) é o presidente do Middle East Forum. © 2022 por Daniel Pipes. Todos os direitos reservados.
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