O esfaqueamento de Salman Rushdie manda uma requentada mensagem ao mundo: leve o islamismo, a transformação da fé islâmica em uma ideologia utópica radical inspirada em objetivos medievais, a sério.
Joseph Anton: Uma Memória relata os anos em que Salman Rushdie viveu se escondendo dos islamistas. |
Entretanto, já ao longo desses anos, Rushdie usou de várias simulações para se convencer de que o édito estava sendo deixado vagarosamente de lado. Em 1990 ele repudiou representações contidas em seu livro que questionavam o Alcorão ou que afrontavam o Islã, seus desafetos corretamente descartaram seu repúdio como sendo da boca para fora, mas Rushdie insistiu: "em me sinto muito mais seguro na noite de hoje do que me senti ontem".
Em 1998, depois de algumas resmungadas concessões de autoridades iranianas, Rushdie declarou triunfantemente que seus problemas acabaram por completo: "não há mais nenhuma ameaça do regime iraniano. A fatwa acabará desvanecendo. Quando alguém se acostuma a receber... más notícias, notícias como essa são quase inacreditáveis. É como se dissessem que o câncer foi embora. Bem, o câncer foi embora."
Rushdie estava de tal maneira convencido que a ameaça havia se dissipado, que ele deu um puxão de orelha nos organizadores do 11º Festival de Escritores de Praga em 2001, pela segurança que providenciaram para ele: "estar aqui e encontrar uma operação de segurança relativamente grande ao meu redor foi realmente um pouco constrangedor, porque, de verdade, achei desnecessário e um tanto demasiado, com certeza não foi organizado a meu pedido. Passei muito tempo antes de vir aqui dizer que eu não queria isso. De modo que fiquei deveras surpreso ao chegar aqui e constatar a existência de uma operação desta envergadura, porque parecia que eu estava num túnel do tempo, que eu tinha voltado vários anos no tempo."
Em 2003, o escritor e amigo de Rushdie, Christopher Hitchens, me repreendeu por eu ter alertado Rushdie reiteradamente (seis vezes no total), pedindo que ele entendesse que o édito de Khomeini poderia nunca ser revogado, lembrando-o de que qualquer fanático poderia atacá-lo a qualquer momento. Hitchens teceu severas críticas à minha maneira "amarga e presunçosa" de insistir que "nada tinha mudado" na situação de Rushdie. Ele refutou meu pessimismo assinalando animadamente que "hoje Salman Rushdie vive em Nova Iorque sem guarda-costas e viaja livremente".
Christopher Hitchens (esquerda) e Salman Rushdie. |
Em 2017, Rushdie além de criticar o Alcorão ("não é um livro muito agradável") também achincalhou o édito da morte em uma comédia, contando vantagem sobre as compensações, notadamente o que ele chamou de "sexo fatwa" com mulheres atraídas pelo perigo.
Em 2021, por incrível que pareça ele reconheceu que se iludia compulsivamente: "é verdade, estou insensatamente otimista e acho que isso me ajudou a atravessar aqueles anos horríveis, porque eu acreditava que haveria um final feliz, quando pouquíssimas pessoas acreditavam nisso".
Ao fim e ao cabo, em 2022, dias antes das facadas, Rushdie proclamou que o édito ocorreu "há muito tempo. Hoje em dia minha vida voltou novamente ao normal". Questionado sobre seus temores, Rushdie respondeu: "no passado, eu teria dito que eu temia o fanatismo religioso. Não digo mais isso. O maior perigo que enfrentamos agora é perdermos nossa democracia", ao se referir à decisão da Suprema Corte dos EUA que o aborto não é um direito constitucional.
À medida que Rushdie e seus amigos achavam que o édito era coisa do passado, seus inimigos islamistas reiteravam sem parar que a sentença de morte estava de pé e que eles mais cedo ou mais tarde o pegariam. E de fato o pegaram, demorou um terço de século, mas o ataque por fim aconteceu quando Rushdie se apresentou, desprotegido, ao público.
A cena momentos depois de Hadi Matar esfaquear Salman Rushdie. |
Será que nós, simples mortais, iremos aprender com essa triste mistura de fanatismo e ilusão? A Rússia e a China com certeza são grandes potências inimigas, mas o islamismo é uma ameaça ideológica. Seus praticantes vão desde os raivosos (ISIS) aos totalitários (República Islâmica do Irã) aos simpatizantes de araque (Turquia de Recep Tayyip Erdoğan). Eles ameaçam por meio da propaganda, subversão e violência. Eles se mobilizam não só nas cavernas do Afeganistão, mas em cidades idílicas como Chautauqua, Nova Iorque.
Que Salman Rushdie se restabeleça completamente e que seu sofrimento sirva de alerta contra a autoilusão.
Pipes é o autor do livro The Rushdie Affair (1990) e presidente do Middle East Forum.
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