Uma versão mais detalhada dessa análise aparecerá na edição de verão de 2025 no Middle East Quarterly.
![]() Verde indica maioria alauita e verde listado forte minoria alauita. |
Ninguém sabe quantos alauitas desarmados foram mortos na Síria entre 6 e 10 de março, contudo o professor de estudos do Oriente Médio da Universidade de Oklahoma, Joshua Landis, estima que foram mais de 3 mil.
Embora os alauitas representem somente uma pequena comunidade religiosa na Síria, talvez 10% da população de 15 milhões de habitantes do país, eles sofrem de uma proeminência e vulnerabilidade únicas.
Ao longo de um milênio, eles se destacaram como a etnia mais isolada, empobrecida, desprezada e oprimida da Síria. O equilíbrio de poder mudou somente quando generais de sua comunidade tomaram o poder em Damasco em 1966.
Mas o implacável domínio alauita na Síria por 58 anos fez com que a maioria da população muçulmana sunita do país se rebelasse em 2011, levando a uma guerra civil de grande escala que terminou em dezembro de 2024, quando os sunitas derrubaram o domínio alauita e voltaram ao poder.
Os recentes eventos apontam para um sinistro desejo sunita de vingança. Para entender suas origens e implicações, é necessário olhar para o passado.
Como é de conhecimento geral, o Islã afirma ser a derradeira religião, consequentemente, sunitas e xiitas, ao longo da história vilipendiaram o alauismo, uma religião nova e distinta que emergiu do islamismo xiita no século IX. Para eles os alauitas eram apóstatas. Ibrahim al-Maghribi, xeique sunita do século XIX, decretou que os muçulmanos poderiam tomar livremente propriedades e vidas dos alauitas, e um viajante britânico registrou ter sido informado: "esses Ansayrii, é melhor matar um do que rezar um dia inteiro".
Frequentemente perseguidos e às vezes massacrados nos dois últimos séculos, os alauitas se isolaram geograficamente do mundo exterior, permanecendo nas regiões montanhosas. Um importante xeique alauita classificou seu povo de estar "entre os mais pobres do Oriente". O missionário anglicano Samuel Lyde achou a situação da sociedade deles "um perfeito inferno na terra".
Após a independência da Síria do domínio francês ocorrida em 1946, inicialmente os alauitas resistiram ao controle do governo central, mas se reconciliaram com a cidadania síria em 1954 e, aproveitando sua super representação no exército, começaram a sua ascensão política.
Os alauitas tiveram um papel importante no golpe Baath de 1963 e assumiram muitas posições-chave ao mesmo tempo em que expurgavam os rivais sunitas. Em 1966 esses acontecimentos culminaram com a tomada do poder por um grupo de oficiais militares baathistas, principalmente alauítas. No drama final, dois generais alauítas, Salah Jadid e Hafez al-Assad, lutaram pela supremacia, uma rivalidade que terminou em 1970 com o triunfo de Assad.
A afiliação confessional continuou sendo de vital importância durante os 58 anos de governo alauíta, principalmente sob a liderança de Hafez al-Assad (de 1970 a 2000), seguido pelo seu filho Bashar (de 2000 a 2024). Hafez montou um violento estado policial impondo o controle alauita, colocando seus correligionários em todos os níveis governamentais.
Até a eclosão da guerra civil em 2011, os sunitas representavam cerca de 70% da população da Síria, fora o tamanho do contingente, eles, de longa data, governaram a região, o que se traduziu na simples suposição de que eles deveriam desfrutar os privilégios do poder. Após 1970, no entanto, eles serviam principalmente para inglês ver, segundo as energéticas palavras de um veterano do exército: "um capitão alauita tem mais voz do que um general sunita".
Não dá para exagerar o impacto psicológico dessa reviravolta sobre os sunitas. Para eles, uma decisão alauita em Damasco se compara a um "intocável" marajá ou a um judeu virando czar, um desdobramento chocante e sem precedentes. Michael Van Dusen, do Wilson Center, chama essa mudança de "o fato político mais significativo da história e da política síria do Século XX".
Essa reversão de poder fez com que os muçulmanos sunitas captassem a repressão totalitária de Assad em termos sectários. Os Assads se empenharam em se apresentar como muçulmanos, mas poucos ou nenhum sunita sírio os aceitou como tais.
![]() O rei Faisal da Arábia Saudita (centro) e Hafez al-Assad (com uma masbaha) orando em Damasco em 18 de julho de 1975. |
A asserção do poder alauita em 1966 provocou as apreensões religiosas dos sunitas. Suas queixas se deterioraram progressivamente conforme sofriam com o domínio de um povo que eles consideravam inferior, ao se darem conta da discriminação em certos aspectos da vida (como por exemplo, famílias sunitas pagarem quatro vezes mais do que os alauitas pela energia elétrica), ao conviverem com a memória do massacre em Hama em 1982 e outros ataques brutais, e ao se ressentirem do socialismo que reduziu os seus bens, as afrontas contra o Islã e a leitura de uma cooperação com os maronitas e com os israelenses.
Um círculo vicioso se instalou. À medida que os sunitas ficavam cada vez mais alienados, os alauitas dependiam cada vez mais do domínio alauita. À medida que o regime assumia uma casta cada vez mais alauíta, o descontentamento sunita se aprofundava.
Quando a rebelião regional islamista de 2011 chegou à Síria, começou uma hedionda insurreição de 14 anos,principalmente sunita, contra o governo de Bashar al-Assad, gerando cerca de 7,5 milhões de desalojados internos e 5,2 milhões de refugiados externos, causando cerca de 620 mil mortes.
Internamente, o regime dependia cada vez mais de sua base alauita. A agência de notícias Reuters relata como Bashar "enviou unidades do exército e da polícia secreta dominadas por oficiais (alauitas)... em centros urbanos principalmente sunitas para esmagar manifestações que pediam seu afastamento".
Algumas das passagens que capturaram a intensidade da hostilidade sunita:
- Adnan al-Arour, um líder religioso sunita, ao se referir aos alauitas que se opunham ao levante sunita, declarou: "juro por Deus que vamos moê-los em trituradores e alimentar seus cães com a carne deles".
- O líder sunita sírio Mamoun al-Homsi ressaltou "seus alauitas desprezíveis" que "desse dia em diante, não ficaremos mais calados. Olho por olho e dente por dente... Juro que, se você não renunciar a essa gangue e a esses assassinatos, nós lhe daremos uma lição que você jamais irá esquecer. Vamos exterminá-lo da terra da Síria.
- Ibtisam, 11 anos, um refugiado sunita que vive na Jordânia: "eu odeio os alauitas e os xiitas. Vamos matá-los com nossas facas, assim como eles nos mataram."
- Heza, 13 anos: "depois da revolução, queremos matá-los." até mesmo uma criança da sua idade? "Eu vou matá-la. Não estou nem aí."
Tais declarações, desnecessário dizer, assustaram a pequena comunidade alauita. Boatos irresponsáveis se espalharam, como a apócrifa açougueira em Homs, que pediu à shabiha, a milícia civil armada, "que trouxesse os corpos dos alauitas que eles capturaram para que ela pudesse cortá-los e comercializar a carne".
O jornal The New York Times noticiou: "muitos alauitas estão apavorados, eles são frequentemente vítimas dos estereótipos mais vulgares e, na voz corrente, uniformemente associados à liderança.
Pior do que isso, muitos alauitas sofreram sob o governo Assad. Wafa Sultan, um médico exilado, fala sobre muitas injustiças, entre as quais o intencional empobrecimento (para garantir que seus filhos servissem ao governo para ganhar o sustento), a perseguição de intelectuais e a prisão de parentes de dissidentes. Assim, muitos alauitas se alegraram com a queda de Assad.
Então vieram os impressionantes eventos no início de dezembro de 2024, quando as forças islamistas sunitas de Hay'at Tahrir al-Sham sob a liderança de Ahmed al-Sharaa, juntamente com aliados, varreram rapidamente a Síria, tomaram Damasco e Assad fugiu para a Rússia.
![]() Forças leais a Ahmed al-Sharaa na costa do Mediterrâneo em Latakia em 9 de março. |
Nos primeiros três meses do novo regime, houve alguma vingança sunita contra os alauitas, mas ela foi limitada e não organizada: demissões, ação de justiceiros e violência em pequena escala. No final de janeiro de 2025, o jornalista sírio Ammar Dayoub documentou atos "que iam desde amaldiçoamentos sectários contra alauitas e xiitas até aglomerr homens nas praças e açoitá-los, quebrar móveis nas casas das pessoas, roubar ouro e prata e atos de violência contra as mulheres".
Em resposta, explica Dayoub, o regime "não reconheceu essas violações, (contudo) culpou indivíduos ou pequenas facções locais". Além disso, o Instituto de Pesquisa de Mídia do Oriente Médio relata: "o novo regime também se absteve de publicar os nomes dos responsáveis, impedindo assim que as famílias das vítimas tomassem medidas legais contra eles". Isso levou ao estabelecimento de "grupos de resistência" alauita que o regime prontamente difamou como "leais a Assad".
Então, em 6 de março, começaram os ataques em grande escala, acima de tudo na região costeira dos alauitas, Latakia, uma província no noroeste da Síria. Forças sunitas, entre elas o Exército Nacional Sírio, apoiado pela Turquia, e jihadistas estrangeiros, atacaram desenfreadamente, incendiaram casas e mataram indiscriminadamente. O governo do HTS apresentou o ocorrido como se estivesse se defendendo de uma insurgência dos "leais a Assad".
![]() Forças sunitas partindo de Idlib em 8 de março, em direção a Latakia para combater os alauitas. |
Mas os alauitas sofreram muito na era Assad e mais ainda durante a guerra civil, de modo que eles abandonaram Bashar quando ele mais precisava deles, quando poderiam salvá-lo. Enquanto Assad definhava na Rússia, o apoio iraniano havia colapsado e as forças israelenses haviam demolido todos os arsenais do antigo regime, eles não foram a campo numa ação de retaguarda por ele. Em vez disso, os ataques desses "grupos de resistência" às forças governamentais refletiam temores de perseguição.
Diferentemente do período da guerra civil, quando os sunitas expressaram livremente sua raiva contra os alauitas, em 2025 eles foram pressionados a se comportar da melhor maneira possível para que Sharaa pudesse convencer as ONGs e os governos estrangeiros a ajudar o seu regime. No fundo, no fundo, bem lá no fundo, no entanto, ficou muito claro que os ataques de março serviram de vingança pelo que Abdallah Khalil al-Tamimi, estudioso religioso sunita, tachou de represália para os dois milhões de sunitas mortos pelo "regime alauita... por razões sectárias".
Em Damasco, um apresentador de rádio "incentivou os ouvintes a jogar os alauitas no mar". Um comandante afiliado ao HTS conclamou: "ó guerreiros da jihad, não deixem nenhum alauita, homem ou mulher, vivo. Massacre os homens mais respeitados deles. Massacre as mulheres mais respeitadas deles. Massacre todos eles, incluindo crianças em suas camas. Eles são porcos. Agarre-os e jogue-os no mar.
Orgulhosos de suas ações, muitos perpetradores filmaram suas ações, como assassinar dois filhos na frente de sua mãe. "Isso é vingança", grita um homem enquanto saqueava e incendiava casas dos alauitas. Os sunitas humilharam os alauitas, relata o Economist, forçando-os a "latir como cães, sentando em suas costas, montando em cima deles e depois matando-os a tiros".
A essa carnificina, Sharaa respondeu serenamente. "O que está acontecendo atualmente na Síria está nos conformes dos desafios esperados. Devemos preservar a unidade nacional e a paz civil", salientou ele. "Pedimos aos sírios que se tranquilizem porque o país tem os fundamentos para a sobrevivência." Além disso, ele criou uma comissão de inquérito.
O fato dos líderes do HTS terem se originado na Al-Qaeda e no Estado Islâmico dá um ar teatral ao se vestirem com blazers ou ternos com gravatas, e depois se enfronharem em conversa fiada sobre direitos humanos culpando os alauitas pela violência. A aceitação ocidental traz muitos benefícios financeiros além de outros.
Alguns já falam em genocídio. O escritor curdo sírio Mousa Basrawi condenou "uma campanha organizada de genocídio... destinada a exterminar os alauitas". A Christian Solidarity International emitiu um "alerta de genocídio" por causa da "orgia de assassinatos direcionados acompanhados de discurso desumanizador de ódio".
A resposta pública a esse perigo? Silêncio virtual. Nada de marchas nas capitais ocidentais, nada de acampamentos nas universidades. E os governos ocidentais? Canberra "condena a recente horrível violência na região costeira da Síria" e está "profundamente preocupada com os relatos da ONU de que muitos civis da comunidade alauita foram sumariamente executados". Washington "condena os terroristas |islamistas radicais, entre eles jihadistas estrangeiros, que assassinaram pessoas no oeste da Síria nos últimos dias". A ONU condena "angustiantes violações e abusos".
Condenações são necessárias, mas não são o suficiente. Repulsar a agressão |islamista representa um interesse ocidental central, além da responsabilidade moral de exigir uma ação urgente para evitar um possível genocídio.
A inércia dos Estados Unidos durante o genocídio de Ruanda em 1994 levou a subsequentes pedidos de desculpas (Bill Clinton: "expresso arrependimento por meu fracasso pessoal"), assim como os fracassos holandeses na Bósnia (Ministra da Defesa Kajsa Ollongren: "pedimos as nossas mais profundas desculpas"). Será que desta vez, os políticos agirão de modo a evitar ter que pedir desculpas depois?
Daniel Pipes (DanielPipes.org, @DanielPipes) é fundador do Middle East Forum. Este artigo se baseia em seus três livros sobre a Síria, além de uma análise de 1987 intitulada "Síria depois de Assad".