Bom dia, senhoras e senhores.
Ocorreu-me que eu devia tentar encaixar o que sei na missão dessa organização, portanto vou experimentar algo novo. Ele irá conter um certo grau de abstração, assim eu o convido a ser bem específico quanto ao Q&A (perguntas e respostas).
Sou um historiador do mundo muçulmano, além de examinar as questões que surgem no dia a dia, analiso essa unidade civilizacional como um todo. É o que farei agora.
Para começar, a religião islâmica predomina na maioria dos países muçulmanos indo do Senegal a Indonésia, não sendo apenas um fenômeno do Oriente Médio. Os muçulmanos podem agora ser encontrados em número considerável na Europa, América do Norte, América Latina e até na Oceania.
A religião islâmica também é uma civilização. Um intelectual denominou-a de Islamizada, indicando que pode ser vista nas mesmas linhas do italianizado. Trata-se de um conceito que considero útil. A civilização islamizada inclui não muçulmanos que moram em países de maioria muçulmana e que compartilham de certos atributos. Por exemplo, a arte pode ser denominada de islamizada. Normalmente é possível distinguir a arte muçulmana; ela não é exatamente islâmica por não estar ligada à religião.
Eu passei parte da minha carreira tentando compreender a natureza da conexão entre o Islã e outros aspectos da vida. Em especial, escolhi um tópico um tanto exótico para minha tese acadêmica e para o meu primeiro livro, intitulado Slave Soldiers and Islam. Examinei a forma de organização militar, única ao mundo muçulmano e me perguntei como esse fenômeno poderia estar ligado à religião do Islã, como poderiam escravos ser usados nessas organizações? É óbvio que, escravos eram usados como soldados em situações de emergência em diversos lugares, em várias épocas, porém o uso de escravos como soldados pelos muçulmanos entre os anos 800 e 1800, aproximadamente, não foi ocasional e também não apenas durante emergências. Era uma instituição centralizada, muito importante, chamada Instituição dos Mamelucos ou Instituição dos Janízaros que podia ser encontrada em diversos continentes através dos séculos.
Que possível conexão poderia haver com o que está ocorrendo hoje? Para encurtar a história, segundo minha tese, era tão oneroso satisfazer as exigências demandadas dos muçulmanos pelo Islã, que por várias razões as populações muçulmanas se retiraram da vida política. Como resultado, os governantes necessitavam introduzir não muçulmanos e a melhor maneira de fazê-lo foi através dessa forma exótica de escravidão. Esse insight foi o primeiro passo em direção à questão maior, a forma pela qual o Islã influencia a política.
No passar impetuoso da história, a investida da religião islâmica foi muito rápida e bem sucedida. O próprio Maomé fugiu de Meca em 622 d.C. Contudo, quando faleceu, já era governante da Arábia e nos 100 anos que se seguiram, seus partidários expandiam-se da Espanha a Índia. Tratava-se de algo maior do que apenas conquistas militares. A religião muçulmana prosperou na cultura, arte, economia e construiu grandes impérios em sua época. Se vocês observassem o mundo, digamos, precisamente do milênio passado, 20 de agosto de 1010, concluiriam que o Islã era a civilização mais bem sucedida, mais ainda do que a da China, Europa ou da Índia.
Começando a partir de cerca de 1200, principalmente após as invasões dos Mongóis, a civilização do Islã entrou em declínio e estagnou por um longo período. O fato notável é que por muito tempo os muçulmanos, em geral, permaneceram alheios a esse declínio, embora ao redor de 1800 tenha finalmente ficado óbvio, principalmente quando da chegada de Napoleão ao Egito e da destruição dos exércitos otomanos e mamelucos. Napoleão trouxe consigo um quadro de cientistas que começou a estudar a flora, fauna e arqueologia, intelectuais que mais tarde iriam decifrar o código dos hieróglifos egípcios. Sua expedição não era somente militar mas também científica. O contraste entre os egípcios e os franceses era enorme e chocou os muçulmanos de tal forma que perceberam que durante esse longo período de estagnação a Europa os havia superado.
Seguiu-se a traumatização. Os muçulmanos presumiam que eram abençoados por Deus tanto no mundo espiritual quanto no mundano. Agora temiam que tinham sido abandonados por Deus, o que os levou a uma profunda reavaliação do que significava ser muçulmano. Os muçulmanos se viram desafiados pela Europa e, de maneira mais ampla pelo Ocidente, sendo esse um desafio que eles ainda enfrentam nos dias de hoje. Como é possível que os povos que deviam estar no topo – militarmente, economicamente, politicamente, culturalmente, cientificamente, tecnologicamente – como é possível que estejam no fundo do poço em termos de capacidade de ler e escrever, longevidade, Prêmios Nobel per capita, medalhas olímpicas per capita? Realmente, em qualquer categoria que você escolher, os países muçulmanos são os últimos. Os povos muçulmanos não estão se saindo bem, entre os piores países do mundo estão a Somália, Afeganistão, Líbano e Iraque, todos de maioria muçulmana. Esse é um ponto de grande tensão, um enorme desafio: O que deu errado, como irão corrigi-lo? Realmente, Bernard Lewis escreveu um livro intitulado What Went Wrong?
De que maneira os muçulmanos explicam isso tudo?
No passar dos últimos 200 anos, surgiram três explicações importantes. A primeira poderia ser denominada de explicação liberal ocidental, em outras palavras, emulação da explicação francesa e britânica. Essas nações invadiram em especial terras muçulmanas; formaram impérios; se tornaram modelos. Eram extremamente bem sucedidas e os muçulmanos tendiam a imitá-los. A figura simbólica dessa tendência foi Kemal Atatürk, dirigente da Turquia entre 1923 e1938, que afastou o Islã da vida pública, substituiu palavras árabes por palavras francesas, introduziu os códigos legais da Bélgica e da Suíça e como um todo fez com que a Turquia aparentasse ser cada vez mais ocidentalizada.
Porém, não deu certo. Nos anos de 1920 e 1930, apesar de Atatürk, havia a sensação de que esse empenho liberal havia falhado. Assim os muçulmanos adotaram outra abordagem. A abordagem que naquela época parecia ser a mais fascinante era a não liberal ocidental. Nos anos de 1920, ponto alto das sociedades totalitárias, Mussolini e Lenin em especial, mostravam o caminho. Estes ofereciam modelos que demonstraram ser de grande influência; Gamal Abdel Nasser do Egito simboliza essa abordagem política. Nos 50 - 60 anos seguintes, os modelos fascista e comunista predominaram nos melhores quinhões da vida intelectual e política. Eles também não se saíram muito bem, não solucionaram os problemas do desamparo e da pobreza.
Portanto, com a decepção proveniente desses dois movimentos surgiu a terceira solução, mais precisamente a islamista. O objetivo desse movimento não era de emular uma ou outra forma de ideologia ou poder Ocidental e sim de regressar à experiência islâmica e se inspirar na sabedoria e nas realizações dos muçulmanos do passado e de reabilitar o mundo muçulmano por meio do estudo da experiência islâmica. O objetivo é fazer algo antigo que tem como inspiração os sucessos islâmicos de séculos passados. O Aiatolá Khomeini simboliza essa abordagem.
É claro, não se pode voltar. Pode-se emular o Islã do século VII, mas não se pode repeti-lo. Os movimentos islamistas das últimas décadas criaram uma nova ideologia e não reviveram algo conhecido. Estou convencido que essa também está fadada ao fracasso. Até o momento o experimento de número um, a República Islâmica do Irã fracassou, por qualquer padrão que seja, pelo fato da grande maioria dos súditos rejeitarem-na.
O islamismo do estilo Bin Laden e Wahhabi claramente não tem futuro. De que maneira iriam governar países? Imagine só Bin Laden como governante; seria como o Talibã e não daria certo. Mesmo uma versão menos extremada, como a do Irã, não é viável a longo prazo. Em vez disso o que vemos são os islamistas evoluindo para algo mais sustentável. A Turquia apresenta aqui o modelo proeminente. Os islamistas turcos disputam e vencem as eleições; não dependem da violência. Praticam uma boa administração econômica e de maneira geral um bom governo. Embora a Turquia tenha muitos problemas, seus islamistas demonstraram que existe uma alternativa. Começou uma era em que os islamistas se valem, em parte da violência do modelo de Bin Laden e em parte trabalham inseridos no sistema político.
Muitos grupos islamistas estão se sobressaindo com o envolvimento em serviços sociais. Uma das tensões agora provocadas no Paquistão é que os islamistas, como ocorreu nos terremotos de alguns meses atrás, foram os primeiros a oferecer a maior parte do socorro às vítimas das enchentes. Obtiveram a boa vontade e o respeito pelo seu trabalho.
Voltando à questão central, como os muçulmanos explicam a questão "O que deu errado"? Será que estão chegando a uma solução prática? Não acredito, mas que estamos sim em um período muito escuro, de pouca criatividade, muita instabilidade e muita violência. Não vejo nenhuma melhora a curto prazo, mas posso antever o potencial para melhorias. Qualquer coisa que possa ficar pior, pode, é lógico, também ficar melhor, eu espero uma solução para o impulso islamista, que seja seguido por algo mais construtivo. Em um determinado ponto, os muçulmanos começarão a descartá-lo e buscar outras alternativas. Não sei o que irão procurar. Será o retorno ao século XIX e ao liberalismo ocidental? Seguirão o modelo Chinês?
Enquanto isso, as coisas poderão ficar piores. Armas químicas, biológicas e nucleares estão ao alcance e poderão ser usadas. Essa ameaça poderá levar a uma instabilidade ainda maior. Além disso, também há um rancor considerável no mundo muçulmano devido ao fato da grande maioria das vítimas dos islamistas serem muçulmanas, por exemplo na Argélia e em Darfur.
Com certeza o 11 de setembro foi um acontecimento de grande importância quando cerca de 3000 não muçulmanos foram mortos. Em outros casos como Bali e Madri cerca de 200 pessoas pereceram. Mas não se trata de números gigantescos, se digamos, comparados com os padrões das duas guerras mundiais. Até agora o Ocidente tem tratado o islamismo com indiferença e não vê nele uma ameaça realmente considerável. Isso poderá mudar. A reação poderá ser substancialmente maior. Estamos numa situação de instabilidade. Veremos anarquia nos países mencionados, começando com a Somália (que está passando por 20 anos de anarquia). Também haverá desespero, extremismo, violência, brutalidade e misoginia.
Uma das implicações será que os muçulmanos desejarão deixar seus lares. Para onde eles vão? Não vão a outros países muçulmanos, embora haja exceções. (Muitos afegãos vão para o Irã). Mas de modo geral eles não desejam ir para a Turquia, Egito ou Indonésia. Eles querem ir para o Ocidente, pelo seu desenvolvimento, bem estar e segurança. Como vocês na Austrália sabem, tendo em vista o número considerável de libaneses, somalis, afegãos, iraquianos e outros refugiados, a distância não é dissuasiva.
Provavelmente o número de refugiados irá aumentar. O desafio de misturar o Islã com o Ocidente já é um tópico da maior importância em grande parte da Europa, embora nem tanto aqui na Austrália ou nos Estados Unidos. E isso está acontecendo quando o índice de natalidade europeu vem declinando. Os europeus estão tendo dois terços dos nascimentos necessários para manterem o equilíbrio. Há a expectativa de que os imigrantes compensarão o déficit. Além disso, a religião cristã está em declínio na Europa bem como a sensação de convicção cultural. Ao mesmo tempo, os imigrantes muçulmanos têm muitos filhos e muita convicção religiosa e cultural.
O Ocidente jamais enfrentou um desafio desses. Eu suponho que a Europa tomará uma das duas direções, ambas desagradáveis. Uma é a de continuar na mesma tendência dos últimos 50 anos com mais muçulmanos, mais leis islâmicas e mais tensões, até que passe a se tornar uma sociedade islâmica. A outra é a de que os europeus, em determinado momento, dirão – "Não, nós não gostamos disso. Nós iremos dar um basta. Iremos usar os meios que forem necessários para dar um basta. Iremos expulsá-los, poderemos até matá-los". É muito cedo para prever qual tendência irá triunfar.
O mundo muçulmano, em suma, está sobrecarregado por uma sensação de glória proveniente de seu sucesso e poder do passado. Ele sente de forma aguda o trauma da modernidade. Está a procura de justificativas. Nesse momento, o islamismo é a solução favorita, mas eu a vejo como temporária. Sua população de mais de um bilhão de pessoas está envolvida em stress e confusão generalizada. Suponho que as coisas irão piorar antes de melhorar. Mas no final irão melhorar.
Finalizo, com essa observação otimista.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
PERGUNTA: O Sr. parece insinuar que o modelo é o AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento da Turquia). Mas eles não estão se tornando cada vez mais anti-democráticos? Estão tentando dominar o exército. A imprensa livre que havia na Turquia é menos livre agora após oito anos aproximadamente. Parece que o AKP só poderá seguir em uma direção. Irá se tornar cada vez mais autoritário e totalitário. O Sr. concorda com isso?
DR. DANIEL PIPES: Concordo com os fatos que o Sr. apresentou e posso acrescentar mais evidências nessa mesma linha de raciocínio. Assim que o AKP se sentiu fortalecido, especialmente em relação as forças armadas, ele parou de ser tão cuidadoso e cauteloso e tomou esse tipo de iniciativas. Se ele derrotar as forças armadas, caso se saia bem nas próximas eleições que ocorrerão em julho de 2011, suponho que haja mais aperto, mais pressão.
Concordo com o Sr., só não entendo porque o Sr. chega a conclusão que isso faz com que o AKP não seja um modelo. Parece-me um modelo muito bom. Torna-se governo por ser eleitoralmente atraente e em seguida muda o sistema. Bem diferente do Khomeini. Aceito a sua apresentação dos fatos, mas chego a uma outra conclusão.
PERGUNTA: Quanto menos liberal você se torna mais perto você chega da posição iraniana. Bem, OK, isso não acontecerá de repente com um aiatolá aterrissando no aeroporto como no caso do Irã. É mais provável que leve 30 anos do que uma aterrissagem instantânea, só estou dizendo isso. Será que estou no caminho errado?
DR. DANIEL PIPES: Não, não estamos discordando. Há duas maneiras para os islamistas alcançarem o poder, através da violência ou através do sistema. Operar através do sistema é uma evolução brilhante longe da violência. No passado os islamistas dependiam da violência. Khomeini chegou ao poder e depois queria difundir a revolução, ele não pensou em criar partidos políticos. Mas o Hisbolá por exemplo, que começou como um artefato de Khomeini no início dos anos de 1980 tornou-se um partido político de grande influência no Líbano. Esse é um tipo abordagem mais sutil e flexível de se chegar ao poder do que o caso anterior.
PERGUNTA: Retomando a discussão sobre a Turquia, qual a probabilidade dela entrar para a União Européia e, o Sr. poderia examinar e explicar porque o governo britânico é agora favorável a sua entrada?
DR. DANIEL PIPES: A probabilidade da entrada da Turquia na União Européia é muito pequena. Ninguém deseja isso – os europeus não querem e os turcos não querem. Alguns líderes estão tentando forçar a situação. Quanto a David Cameron, tenho o pressentimento de que ele não é o único líder no governo e, parece que na realidade quem está no comando é Nick Clegg.
PERGUNTA: Dr. Pipes, talvez tenha começado de Gallipoli em diante, houve um relacionamento especial, muito emotivo entre a Austrália e a Turquia, com um respeito mútuo muito grande. O Sr. veria a Austrália capaz de fazer uso disso a fim de influenciar os acontecimentos na Turquia moderna?
DR. DANIEL PIPES: O objetivo do AKP não é o de ser uma ponte entre o Ocidente e o mundo muçulmano. É o de ser o líder do Oriente Médio. O ministro das Relações Exteriores é um estrategista que surgiu com uma noção chamada Profundidade Estratégica. Não vejo onde a Austrália se encaixaria, apesar de um século de história.
PERGUNTA: Em relação às duas questões sobre o que deu errado e como corrigir o erro, o Sr. vê alguma diferença entre os islamistas fervorosos e os menos dedicados?
DR. DANIEL PIPES: Em termos gerais são a mesma coisa. Existe várias versões do islamismo. Por exemplo, na Arábia Saudita as mulheres estão proibidas de dirigir, não podem fazer isso, não podem fazer aquilo. No Irã, elas podem. A ideia iraniana é a de que eles criaram uma república islâmica onde as mulheres estão seguras. Na versão saudita, o perigo está em todas as esquinas e as mulheres precisam de proteção. Há muitas dessas diferenças tanto quanto ao estilo quanto a substância. Mas no final, todos os islamistas aspiram o mesmo, ou seja, a aplicação da lei islâmica. A lei islâmica difere ligeiramente no Egito, Arábia Saudita, Irã e na Índia. As escolas são diferentes, porém trata-se de detalhes e no geral a aspiração de se aplicar a lei islâmica é comum a todos os muçulmanos.
PERGUNTA: Quão importante o Sr. acredita ser a ligação entre a Turquia e Israel, principalmente após a abordagem do barco de ajuda turco?
DR. DANIEL PIPES: O governo turco usou acima de tudo o anti-sionismo como veículo para isolar e desacreditar as forças armadas. As forças armadas são o alvo prioritário, devido ao fato de estarem entre o AKP e a soberania total. As forças armadas poderiam a qualquer momento afastar os islamistas, como o fez recentemente em 1997. Contudo, agora os militares se sentem enfraquecidos. Eles conhecem as pesquisas de opinião e acompanham as eleições como qualquer outro e não têm confiança o suficiente para tomar o poder. O AKP acusou os militares e outros de patrocinarem atividades anti-governamentais, prendendo ex-oficiais militares e tirando com violência o controle de nomeações do alto escalão.
PERGUNTA: Duas coisas chamam a minha atenção. A primeira, relacionada com a próspera situação econômica lograda pelo Ocidente, pelo menos até a crise financeira global. A segunda relacionada ao uso efetivo da tecnologia. Qual o impacto disso tudo sobre o Islã e como irão evoluir essas duas questões?
DR. DANIEL PIPES: O mundo muçulmano em geral mantém um fraco desenvolvimento em termos econômicos. A Malásia e a Turquia são duas exceções. O grande atributo do mundo muçulmano são os recursos, não muito diferentes, na realidade daqueles da Austrália Ocidental. Não se produz muito quando se exporta commodities. Mas a Austrália Ocidental é apenas uma pequena região do Ocidente. Não há praticamente nenhuma invenção vinda do mundo muçulmano. Qual companhia egípcia possui um departamento de pesquisa e desenvolvimento (P&D)? Onde está o espírito empreendedor? E não pára por aí. Há pouca criatividade. Quando há, as pessoas vão para o Ocidente. Há muçulmanos talentosos de sobra, mas eles não têm a oportunidade de se desenvolverem em seus próprios países. Eles vão a outros lugares – como é o caso na medicina, computadores, qualquer que seja o setor. A recente descoberta de minérios no valor de um trilhão de dólares no Afeganistão confirma essa tendência. Os Ocidentais descobrem as riquezas e as extraem. Vejo o mundo muçulmano travado nesse cenário por ainda um longo período; é ligeiramente comparável a maneira pela qual a União Soviética espionava o Ocidente para obter a sua tecnologia, informação e insights.
É difícil romper esse tipo de dependência. Requer confiança cultural. Estive comparando o Japão com a Turquia. Escolhi esses dois países pelo fato do Japão ter passaso pela Revolução Meiji e a Turquia pela Revolução de Atatürk. Ambas as lideranças não só modernizaram como também ocidentalizaram. No Japão o imperador insistiu nas danças de salão como uma faceta da ocidentalização. Da mesma forma, Ataturk proibiu o turbante. Contudo, examinando de perto essa comparação, percebe-se que os japoneses tinham a confiança interior que se manifestava em uma disposição cultural natural. Pode-se aprender, se adaptar e continuar sendo japonês. As mulheres por exemplo, podem usar trajes japoneses para eventos formais e trajes ocidentais para eventos informais sem que isso tenha algum significado. É impossível imaginar um turco usando um traje típico sem que isso signifique uma enorme asserção cultural e religiosa. Mulheres que usam burcas não o fazem em período parcial; trata-se de uma asserção cultural da maior importância. Os japoneses podem jogar com as diferenças culturais, os turcos não. Os japoneses consomem comida francesa num dia e no dia seguinte comida japonesa – da mesma forma, isso não quer dizer nada. Entretanto, se você for egípcio ou turco e se alimentar com um determinado tipo de comida, isso diz quem você é. Há esse temor entre os muçulmanos de que perderão a identidade muçulmana. Eles se apegam de um jeito que não se vê entre os japoneses.
PERGUNTA: O Sr. mencionou anteriormente que a população de muçulmanos no mundo supera e bem um bilhão de pessoas. O Sr. está insinuando que todos os muçulmanos são islamistas e têm ambições hegemônicas em relação ao Ocidente?
DR. DANIEL PIPES: Não, eu não estou sugerindo isso. Entre 10% e 15% dos muçulmanos, a grosso modo, um oitavo da população muçulmana, busca a aplicação da lei islâmica na sua totalidade.
PERGUNTA: O Sr. acredita no crescimento das comunidades islâmicas e européias, particularmente levando-se em consideração a grande migração de muçulmanos para a Europa? Ou isso levará a conflitos?
DR. DANIEL PIPES: Havia uma clara distinção entre os países muçulmanos e o Ocidente. Até 1955 não havia no Ocidente populações muçulmanas consideráveis excetuando-se algumas populações nativas em lugares como a Albânia, Iugoslávia e Rússia, mas com toda certeza não na Europa Ocidental, nem aqui nem nas Américas. Na realidade em 1965 havia aproximadamente 150000 muçulmanos nos Estados Unidos em uma população de 150 milhões. Agora parece que são três milhões em uma população de 300 milhões. Na França supõe-se que os muçulmanos estejam entre 5% e 10% da população. Portanto descobriu-se uma nova presença de muçulmanos no Ocidente. Simultaneamente, os cristãos no mundo muçulmano estão desaparecendo. No Iraque por exemplo, os ataques contra cristãos, principalmente a partir de 2003, levaram a um êxodo maciço. O mesmo aconteceu em Belém e Nazaré, onde por séculos havia populações cristãs majoritárias, hoje porém a situação se reverteu.
A Malásia apresenta um caso interessante. Aparentemente as coisas por lá andam em constante mudança e o papel dos não muçulmanos na Malásia ainda está em aberto. Pode-se facilmente imaginar que o movimento islâmico está tentando expulsar ou converter os não muçulmanos. As comunidades cristãs e judaicas do Oriente Médio que lá se encontram há 1400 anos estão desaparecendo. Não há, virtualmente, judeus no Egito e a população cristã encontra-se sob extrema pressão, particularmente nos últimos 30 anos e está partindo. Posto isso, ocorre simultaneamente a expansão do Islã no Ocidente e a diminuição do Ocidente no Islã.
PERGUNTA: Dada a sua exposição sobre a busca no mundo muçulmano de uma resposta à questão sobre o que deu errado e, também, visto o número relativamente pequeno de islamistas devotos, o Sr. vê algum potencial para que ocorra a criação de algum de movimento de reforma dentro do Islã como uma solução em potencial para o que deu errado?
DR. DANIEL PIPES: Espero que haja uma reforma, há e haverá muçulmanos que relerão as escrituras do Islã sob a luz dos tempos modernos. Isso é o contrário do que acreditam os islamistas. Os islamistas adotam as escrituras e leem-nas de maneira rigorosa e arcaica. De qualquer modo, isso prova que as escrituras estão totalmente abertas a interpretações. Um debate, quero enfatizar, está ocorrendo no Ocidente entre aqueles, como eu, que dizem que o Islã é um fenômeno histórico que sofre alterações e, um outro grupo que diz, "Não, o Islã é imutável, é um cerne essencial. A Jihad é este, o Alcorão, aquele. É imutável e o Islã é o inimigo".
PERGUNTA: Em relação a experiência européia nos Bálcãs islâmicos, há algo que possamos extrair dela e extrapolar de forma mais ampla? Aconteceu algo nos últimos 20 anos nos Bálcãs que possa nos levar a acreditar que não estamos necessariamente entrando em um período escuro?
DR. DANIEL PIPES: Infelizmente, eu chegaria à conclusão oposta. O Islã dos Bálcãs era moderado. Aí vieram os Wahhabis, os Sauditas, seus recursos, suas instituições e a sua inclinação para o islamismo, assim como vem ocorrendo com outras regiões do mundo muçulmano. Historicamente, os movimentos mais repressivos vieram do Oriente Médio tendo como a periferia seu raio de influência. Pode-se ver o quão eficientes os islamistas se tornaram na Nigéria, Bangladesh e Indonésia. Frequentemente as pessoas dizem, "Bem, é possível transportar ideias indonesianas para o Oriente Médio" e eu respondo, "Vale a pena tentar, boa sorte", mas duvido que os sauditas irão ouvir os indonesianos.
PERGUNTA: No século passado eu visitei Istambul um par de vezes. Fiquei impressionado, enquanto cidade européia moderna, naturalmente em comparação com outras cidades muçulmanas como o Cairo. Logo a minha questão é, por que o Sr. acredita que o modelo liberal fracassou ou está fracassando no momento na Turquia?
DR. DANIEL PIPES: O Sr. está perguntando "Quem perdeu a Turquia"? É claro, pode ser que não esteja perdida e que as coisas ainda possam dar certo. Dito isso, o que aparentemente fez com que a Turquia fosse perdida não foi a frieza européia. Nem os problemas econômicos. Mais exatamente, tem a ver a primeira vista, com uma questão de pouca importância na lei eleitoral turca que requer que a representação no parlamento seja limitada a partidos que consigam no mínimo 10% dos votos, um piso muito alto. Em outros países o piso encontra-se na ordem de 1%, 2% ou 5%. Em 2002 o resultado da votação foi de 34% para o AKP e 19% para o CHP, o partido de esquerda. E os 34% do AKP resultaram em uma vitória de 67%, ou seja, dois terços das cadeiras. Se a lei eleitoral fosse outra ou se a esquerda moderada e a direita moderada tivessem a sagacidade de trabalharem juntas, acredito eu que o AKP não estaria governando, como de fato está.
PERGUNTA: Então o Sr. acredita não se tratar da intensificação da radicalização muçulmana da sociedade turca, e sim apenas dos caprichos da política e que poderá ser revertido?
DR. DANIEL PIPES: Sim, poderá ser revertido. Eu acho que a próxima eleição geral, marcada para 2011, é crítica. Se o AKP vencer, estará tudo acabado. Ficarão no poder por muito tempo. Se perderem, poderá ser redimido. Portanto, a chave está na próxima eleição.
PERGUNTA: De que maneira a Administração Obama, incluindo o alto escalão no Pentágono e no governo, veem essa situação? Há clareza no entendimento ou na avaliação da magnitude desse fenômeno como um todo?
DR. DANIEL PIPES: Eu mencionei o debate entre pessoas que compartilham da minha convicção que acreditam que o problema é o Islã radical e aqueles que acreditam que o problema é o próprio Islã. Mas há uma terceira posição que eu não abordei. Trata-se da posição do Establishment, ou seja, a posição da maioria no governo, jornalistas e os envolvidos na vida acadêmica que acreditam que o problema na realidade nada tenha a ver com o Islã. É o problema do extremismo radical, do terrorismo, da Al-Qaeda. Alguns políticos chegam ao ponto de dizer que se trata de um fenômeno anti-islâmico. Essa é a atitude prevalecente na Administração Obama. Qualquer que seja o tópico, eles livram o Islã da responsabilidade.
Vou lhe dar um exemplo. O massacre de Fort Hood em novembro do ano passado quando um major do exército de ascendência muçulmano-palestina pegou uma arma e matou 14 pessoas. Tudo indicava que se tratava de um membro da jihad. Porém o relatório apresentado recentemente sobre o ocorrido não menciona o Islã. A razão dessa negação é bem mais profunda do que a correção política. Se for admitido que tenha algo a ver com o Islã, logo a questão islâmica terá que ser abordada. Abordando de uma maneira institucional, se você estivesse nas forças armadas dos Estados Unidos, não seria fácil de resolver, então se deixa estar.