É relativamente simples o estudo do impacto da modernidade sobre os aristocratas do Oriente Médio (pelo fato deles manterem contato com os europeus) e sobre os intelectuais (que publicaram livros). E quanto às massas? Estudos etnográficos proporcionam dados fundamentais assim como os levantamentos governamentais. Entretanto, compreender como as pessoas pensavam e agiam e o que sentiam é praticamente impossível a partir dessas fontes.
Capa do livro de "Bayn al-Qasrayn". |
Por sorte, uma parcela dos melhores escritores do Oriente Médio do século XX dedicaram esforço considerável para explicar o desafio da modernidade e descrever as reações a ela. No caso do Egito, o romance social que se sobressai é o Thulathiya (Trilogia) de Najib Mahfuz (nascido em 1912), um longo e abrangente relato da maneira pela qual a modernização afeta três gerações de uma típica família do Cairo, relativamente próspera, a família 'Abd al-Jawad. Ao examinar o primeiro volume do romance Bayn al-Qasrayn ("Entre os Dois Palácios", o nome de uma das principais ruas da região antiga do Cairo) percebe-se que ele proporciona insights no tocante à mentalidade e aos costumes dos egípcios dos centros urbanos nos anos 1917 a 1919. Mahfuz aponta para os três principais pontos de atrito das culturas tradicionais e modernas dos egípcios entre os cosmopolitas que não fazem parte das elites (baladi povo): relações familiares, atitudes em relação ao sexo e o padrão de lealdade na política
Relações familiares
Compromissado com o padrão muçulmano de longa data, o pai Ahmad domina por completo a vida da sua esposa, cinco filhos (duas meninas e três meninos). Ele não só tem poder absoluto sobre a família como também normalmente exige demonstrações de serviçalismo: os filhos devem beijar suas mãos quando ele está bravo com eles. A esposa Amina, fica sentada aos seus pés todas as noites quando ele volta para casa de suas libertinagens, para que ela tire seus sapatos e meias. A família tem tanto medo dele que ninguém ousa mentir, ainda que membros da família tenham planejado mentir. Na melhor das hipóteses, eles se procrastinam brevemente diante dele ou choram. Yasin, o filho mais velho, certa vez viu seu pai com uma amante, mas ele não pode tirar partido disso, impossibilitado de fazê-lo mesmo em defesa própria quando for flagrado com uma mulher. Enquanto os membros da família sentem na pele o poder de Ahmad, independentemente de onde estiver, ele próprio se entrega livremente à promiscuidade sem levar em consideração a suscetibilidade de Amina em saber disso tudo. Ele não tem que prestar contas a ninguém e mesmo assim mantém controle total sobre os demais.
À medida que a autoridade de Ahmad esmaga o relacionamento com a esposa e filhos, ela também os obriga a se aliarem uns aos outros. A família inteira, incluindo a mãe e o filho de dez anos, temem Ahmad da mesma maneira que os demais. Uma empatia em comum vem à tona e os sustenta, uma empatia que se renova diariamente quando toda a família, menos Ahmad, toma café à tarde com profundo alívio devido aos laços forjados vivendo sob o domínio de Ahmad. Independentemente das diferentes personalidades e atividades de seus membros, eles compartilham uma ampla gama de esperanças e medos.
Portanto, segundo Mahfuz, a estrutura familiar tradicional dos muçulmanos permanece inabalável no Cairo no período da Primeira Guerra Mundial. No entanto, claros sinais de mudança começam a emergir no horizonte: quando Fahmi, o segundo filho mais velho se recusa a obedecer Ahmad para parar de se envolver em atividades de caráter nacionalista, ele se comporta de forma vanguardista, como um filho moderno. Fahmi não é meramente desobediente, ele é inspirado por princípios morais que Ahmad não tem como compartilhar nem reverter por meio do poder da autoridade pessoal. Esse tipo de conflito entre gerações era praticamente inconcebível na sociedade estática de épocas anteriores, quando tanto o pai quanto o filho coadunavam com a tradicional lealdade. O nacionalismo, então, estimula o primeiro grande desafio da autoridade de Ahmad. Estabelecido o precedente, as recorrências, sem a menor sombra de dúvida acontecerão cada vez com mais frequência e com menos justificativas. À medida que o poder de Ahmad diminui, as relações familiares avançam em direção da modernidade.
Atitudes em relação ao sexo
As relações entre os sexos compõem uma parte importante da Bayn al-Qasrayn. Três aspectos desta questão mereceram ênfase especial: a inferioridade das mulheres, o "duplo padrão" e a reclusão das mulheres. Amina incorpora as características de uma mulher tradicional, ao passo que a esposa de Yasin, Zaynab, representa a nova geração.
Na visão tradicional dos muçulmanos, as mulheres são inferiores aos homens. Ahmad resume essa visão quando ele diz à Amina: "você não é nada além de uma mulher e todas as mulheres são mentalmente deficientes". Amina não diz nada, ela sempre ouviu que era inferior e acredita nisso, a obediência dela a Ahmad é testemunha indubitável disso. Certa vez, no primeiro ano do casamento, Amina manifestou seu descontentamento com as saídas noturnas de Ahmad, ele respondeu: "eu sou homem. Assunto encerrado, não aceito nenhum comentário sobre o meu comportamento. Você deve obediência a mim e precisa tomar cuidado para não me obrigar a botar você na linha". Amina então aprendeu com isso e com outras lições que se seguiram que ela devia suportar tudo, até a presença de duendes, para não despertar a fúria do marido. O papel dela era ser incondicionalmente obediente. A submissão era total. De outra feita, Yasin explica a Zaynab: "sobre o direito irrestrito dos homens fazerem o que bem entenderem e o dever das mulheres de obedecerem".
As mulheres que viviam no Egito, segundo as tradições, aceitavam o privilégio dos homens de usufruírem uma vida noturna independente. Enquanto a esposa fica em casa, muitos maridos (aqueles que têm condições financeiras) saem todas as noites. Eles ficam em barzinhos, vão a musicais e muitas vezes acabam se encontrando com prostitutas ou amantes. O marido pode não voltar até o amanhecer, mas isso não importa, quando ele voltar para casa a esposa o espera e os dois vão juntos para o dormitório. Um belo dia Amina pergunta onde o marido vai à noite, Ahmad responde que um homem como ele "que se diverte à noite não pode viver sem outras mulheres". Ao mesmo tempo, a mãe de Amina a lembra: "Ahmad se casou com você após se divorciar da primeira esposa, ele tem todo o direito de tê-la de volta se ele assim o desejar ou casar com uma segunda, terceira ou quarta mulher... então dê graças a Deus que você ainda é a única esposa".
Maridos em condições de contratarem criados e fazerem uso de banheiros privados via de regra proíbem as esposas de saírem de casa. Isolar as mulheres dentro de casa assegura a fidelidade delas. Para elas, isso pode significar não saírem de casa a partir do primeiro dia do casamento. Vinte e cinco anos após o casamento, Amina via a cor da rua somente para visitar sua mãe e ainda assim em raras ocasiões, claro que acompanhada de seu marido. Conforme Yasin contou a Zaynab: "desde tempos imemoriais, a casa é o domínio das mulheres, o mundo dos homens". Em outra ocasião, Yasin reflete sobre as mulheres "serem animais domésticos e, assim sendo, devem ser tratadas como tais. Elas não devem ter permissão de se intrometerem em nossas vidas privadas, devem esperar em casa até que terminemos a nossa diversão".
Poster do filme "Bayn al-Qasrayn" de 1964. |
A reclusão da mulher e o padrão de dois pesos e duas medidas se misturam para criar os extremos da vida conjugal conduzidos na família 'Abd al-Jawad. O marido sai todas as noites, desfruta da alegre companhia de seus pares do sexo masculino e de mulheres de vida fácil, enquanto a esposa fica em casa durante décadas, sem poder sair. Esse estilo de vida obviamente não pode sobreviver à modernização.
Zaynab, filha de um amigo turco/egípcio de Ahmad e futura esposa de Yasin, quer mudar seu posicionamento como mulher. Ela desfrutava de uma liberdade incomum na juventude, chegava até a ir ao cinema vez ou outra com seu pai e isso influiu profundamente em seu desenvolvimento. Um belo dia, pouco depois que Zaynab se casou com Yasin, ela manifestou vontade de acompanhá-lo em sua saída noturna. Yasin aceitou e eles passam a noite juntos. Ao saber disso, o restante da família fica chocada e ninguém mais do que Amina e sua filha mais velha Khadija. As duas trocam ideias sobre a audácia de Zaynab, Khadija observa que Yasin "tem todo o direito de desfrutar da vida noturna que ele tanto gosta ou ficar fora de casa até o amanhecer, se ele assim o desejar, mas a ideia de sua esposa acompanhá-lo não poderia ser sua" porque não é tradicionalmente aceitável. Khadija percebe claramente que foi Zaynab com suas ideias modernas que instigaram o ocorrido.
Mas a rebeldia de Zaynab contra a reclusão é de somenos se comparada com a recusa em aceitar a prerrogativa masculina do padrão de dois pesos e duas medidas, justamente no dia em que ela descobre Yasin junto com sua própria criada negra na sala. Atordoada com a flagrante infidelidade, Zaynab vai para a casa do pai e exige o divórcio. A mãe de Zaynab desaconselha-a a fazer isso, lembrando-a que "todos os homens saem para se divertir à noite e que eles também bebem, incluindo o pai dela, e mesmo assim a casa sempre foi virtuosa. Ele sempre voltou para casa, independentemente da diversão, da bebedeira." Amina não morre de amores por Zaynab, mas ficou chocada com a sua ousadia: "como ela pode reivindicar direitos que nenhuma mulher tem?" Quanto aos homens, tanto Ahmad quanto o pai de Zaynab estão mais irritados com o objeto da infidelidade de Yasin (uma criada idosa) do que pela infidelidade em si. Se Yasin estivesse com uma mulher vistosa, eles nem levariam em conta a insistência de Zaynab no tocante ao divórcio.
Assim como Fahmi apresenta o primeiro elemento moderno nas relações familiares, Zaynab o traz às relações sexuais. Ela está sozinha na tentativa de alcançar uma vida diferente, as outras mulheres se opõem a ela ainda mais do que os homens. Como Fahmi, Zaynab abre caminho, no entanto Yasin se divorcia dela e ela é libertada de um casamento intolerável.
Política
A questão da mudança das alianças políticas predomina no terço final da obra de Bayn al-Qasrayn. O ano é 1919. Anuncia-se uma trégua (365) e o Partido Wafd emerge liderado por Sa'd Zaghlul. (368f) À medida que os dias avançam, a família 'Abd al-Jawad reage às repetidas investidas de Zaghlul de ir para a Grã-Bretanha, seu exílio para Malta, (402) a ocupação militar do Cairo (422), a libertação de Zaghlul de Malta (553) e as comemorações que se seguiram. (565f) Estes acontecimentos políticos provocam fortes e desesperadas reações dos membros da família. Os extremos vão de Amina, que acredita que a já falecida Rainha Victoria deveria ser educadamente interpelada para libertar Zaghlul (373) para que ele se junte a Fahmi, que está pronto para sacrificar a vida pela independência do Egito. (488) Quanto aos posicionamentos mais intermediários, Yasin mostra interesse pela política (374, 398) e Ahmad inclui seu nome em um abaixo-assinado nacionalista. (377)
Essas diferenças no tocante às reações seriam praticamente inimagináveis em épocas anteriores. Tradicionalmente, o muçulmano egípcio dedicava toda sua lealdade à umma (comunidade dos muçulmanos), não ao Egito. Apesar do caráter homogêneo e coeso do Egito, a lealdade regional era particularmente tímida, consequência do país ter sido governado por estrangeiros por 2.500 anos (desde 525 a.C). O surgimento do Partido Wafd é a primeira ocorrência em que uma ideologia nacionalista compete com a tradicional fidelidade islâmica à umma, chegando até a superá-la. O ano 1919 marca o crucial divisor de águas. Desde então, a maioria dos egípcios passam a ter a fidelidade dirigida mais ao Egito do que à umma.
Ao passo que o comportamento da aristocracia e o conteúdo dos livros dos intelectuais não reflitam a educação e mentalidade dos cidadãos do Egito, a grosso modo, na época da Primeira Guerra Mundial, foram esses dois grupos que estimularam as mudanças das relações familiares, sexuais e políticas descritas acima, consequência da resposta a estímulos europeus. Eles por sua vez influenciaram os baladi (classe não elitizada, do cidadão comum) no Egito. Os 'Abd al-Jawads se encontravam no topo da hierarquia baladi: Ahmad era um comerciante de sucesso, um dos filhos casou com a filha de uma linhagem turco-egípcia, outro cursou a faculdade de direito. Mahfuz conclui que, assim como os aristocratas e intelectuais faziam o papel de intermediários da cultura moderna entre os europeus e as classes baladi, as famílias como a 'Abd al-Jawad primeiramente incorporaram influências modernas e as transmitiram para as classes menos favorecidas. Este processo ainda está em andamento. É possível ver hoje as classes menos favorecidas do Egito (pobres da zona urbana, camponeses) marginalmente afetadas pela modernização.
Bayn al-Qasrayn retrata o Egito no momento em que as classes baladi foram inicialmente afetadas, de maneira crucial, pela modernização. As relações familiares foram primeiramente influenciadas quando as novas circunstâncias levaram a uma diminuição da autoridade da pater familias. Tanto as atitudes em relação ao sexo quanto o posicionamento das mulheres passaram por uma ruptura quando as mulheres egípcias exigiam maior igualdade. O fervor nacionalista ultrapassa a lealdade à umma. A vida segundo os velhos tempos continua no período da Primeira Guerra Mundial, mas vários elementos cruciais da modernidade já começavam a colapsar as estruturas tradicionais.