Eventos
A partir de 25 de março, multidões avassaladoras de jovens de Gaza marcharam pelas ruas ladeadas por prédios destruídos, empunhando cartazes, gritando palavras de ordem. Prosseguindo pacificamente em plena luz do dia, com rostos descobertos, berrando furiosamente em frente das câmeras de vídeo em close-up, eles não atacam Israel, e sim o Hamas, seus senhores jihadistas. Se Jerusalém prestar atenção, o protesto deles poderá marcar um divisor de águas, positivo, no conflito palestino/israelense.
![]() Manifestantes anti-Hamas marchando entre as ruínas que o Hamas fez cair sobre eles. |
Este espontâneo e imprevisto evento começou com os enlutados em um funeral no distrito de Beit Lahiya, na Faixa de Gaza, e depois se espalhou. Entre as palavras de ordem constavam, incluindo o que pessoalmente testemunhei em vídeos:
- "Abaixo o Hamas."
- "O Hamas não nos representa."
- "Hamas cai fora."
- "O Hamas é terrorismo."
- "O Hamas é terrorista"
- "O governo do Hamas nos destruiu."
- "Que o Hamas vá para o inferno."
- "Fora, fora, fora, Hamas cai fora."
- "Pare com o derramamento de sangue."
- "Pare com a guerra, queremos viver."
- "Não queremos morrer."
- "Nós rejeitamos o governo do Hamas."
- "Queremos o fim da guerra."
- "Queremos viver em liberdade."
- "Queremos viver em paz."
- "Sim para a paz, sim para a paz."
Em determinado momento, os manifestantes foram mais além da exigência de só se livrarem do Hamas e fizeram uma específica exigência política: "os cidadãos aqui exigem que o Hamas liberte os prisioneiros israelenses". "Libertem os prisioneiros israelenses para acabar com a guerra." (Observe que eles propositalmente não mencionam a palavra Israel.)
Inicialmente o Hamas respondeu posicionando seu pessoal à paisana para intimidar e reprimir os manifestantes. Com o passar do tempo, o grupo reagiu de forma mais agressiva, chamando os manifestantes de "colaboradores" e "traidores". Junto com organizações aliadas, condenou "esses indivíduos suspeitos (que) são tão responsáveis quanto a ocupação (israelense) pelo derramamento de sangue de nosso povo e serão tratados como manda o figurino".
![]() O já falecido Odai Nasser al-Rubai, 22, torturado e assassinado pelo Hamas. |
Fiel às suas ameaças, o Hamas deteve jornalistas, penalizou policiais que se recusaram em dispersar os manifestantes e recompensou aqueles que obedeceram suas ordens. O grupo atirou para o alto, deteve manifestantes, depois os espancou e os torturou.
Ao que consta o Hamas teria matado seis dos que o criticavam, particularmente Odai Nasser al-Rubai. Ele afirmou publicamente "estou farto desta guerra", acrescentando que o Hamas "quer atirar em mim". Em resposta, o Hamas o sequestrou, o torturou por quatro horas, o amarrou à traseira de um carro, o arrastou pelas ruas, o esfaqueou repetidamente e jogou seu corpo moribundo na casa da sua família. Os enlutados que acompanhavam seu caixão gritavam muitas palavras de ordem, entre elas"fora Hamas, fora, fora", enquanto a sua família pedia a "Alá Todo Poderoso que infligisse sofrimento" a seus assassinos e os punisse severamente.
Reações
Em uma declaração conjunta, os poderosos, mas geralmente prostrados líderes de clãs de Gaza pediram aos moradores de Gaza que "lancem um levante popular" e que o Hamas "largue Gaza imediatamente". O rival palestino do Hamas, a Fatah, instruiu portentosamente o Hamas a "responder ao chamado do povo palestino na Faixa de Gaza".
Moumen al-Natour, ex-prisioneiro político do Hamas, esperava celebrar o movimento: "os manifestantes anti-Hamas ao meu lado em Gaza que estão finalmente descobrindo suas próprias vozes depois de perder tudo, estão ao meu ver, entre as pessoas mais corajosas do planeta".
Os árabes que criticam o Hamas não se contiveram, sendo talvez o jornalista saudita Rashed al-Qahtani o mais incisivo. Qahtani chamou a violência do Hamas contra os habitantes de Gaza de "desprezível, horrível e recorrente". A violência do grupo é caracterizada pelo sadismo e constitui uma tentativa de trazer perdição, humilhação e desonra.
Como era de se esperar, as autoridades israelenses, aplaudiram os protestos. "O Hamas insiste em levá-los para o inferno, a solução está em suas mãos", eles inundaram os moradores de Gaza com mensagens de texto. Dirigindo-se aos "Residentes de Gaza" no X, o ministro da Defesa de Israel, Israel Katz, os aconselhou a "aprenderem a lição com os residentes de Beit Lahiya. A exemplo deles, exijam vocês também a derrubada do Hamas em Gaza.
Natour esperava que os oprimidos de Gaza arriscassem suas vidas para protestar contra o Hamas e que isso prejudicaria o posicionamento do grupo internacionalmente: "alguns no Ocidente, sem dúvida, ficaram confusos ao verem os palestinos tomando as ruas em Gaza e chamando abertamente o Hamas de 'terroristas'". Mas esses ocidentais não pareciam claramente confusos, pois para o monomaníaco antissionista significa, conforme observa o senador americano Bill Hagerty, ignorar os eventos em Gaza: "nenhuma indignação da esquerda radical pró-Hamas nos Estados Unidos e nenhuma reportagem na grande mídia porque aquilo não se encaixa na narrativa deles".
Adam Bandt, líder do Australian Greens, falou por muitos quando inicialmente desconsiderou a perseguição do Hamas aos habitantes de Gaza e, em seu lugar, pediu a Canberra que respondesse com "pressão sobre o governo extremista de Netanyahu para acabar com a ocupação da Palestina, que é a causa raiz do conflito, e acabar com a invasão em Gaza". Nisso, Bandt ecoou a Al Jazeera, a rede de propaganda do Hamas que os manifestantes condenaram dando nome aos bois. Protestos? Claro, e eles exigiram "o fim da guerra de extermínio de Israel contra Gaza".
Causas
Os sentimentos anti-Hamas entre os habitantes de Gaza não são nem de longe coisa nova. Mesmo antes de 7 de outubro. pesquisas de opinião e evidências que provém de rumores indicaram que a maioria deles desprezava os senhores do Hamas. Mas o poder e a brutalidade desses senhores supremos limitaram a expressão de descontentamento a murmúrios e à emigração. Assim, cerca de 115 mil habitantes de Gaza, cerca de 5% da população, partiram em oito meses a partir de 7 de outubro.
Muitos mais anseiam se juntar a eles. Na primeira quinzena de março, uma pesquisa da Gallup International perguntou aos moradores de Gaza o seguinte: "você deixaria Gaza se tivesse a oportunidade?" Quatro por cento "enviariam a família para o exterior, mas permaneceriam em Gaza", 38% "partiriam temporariamente, mas retornariam no futuro" e 14% "partiriam permanentemente". Somados, são 56% buscando algum tipo de fuga. Até Khalil Shikaki, diretor de uma empresa de pesquisa de opinião palestina, amigo do Hamas, reconhece que o Hamas conta com o apoio de apenas "perto de um terço" dos habitantes de Gaza.
Mas por que é que só agora eclodiram os protestos? Por duas razões principais: nas palavras de um ativista, "não temos absolutamente nada a perder. Já perdemos tudo, de modo que não temos mais medo." Igualmente importante, as sistemáticas incursões israelenses degradaram as forças de segurança interna do Hamas. De duas maneiras, então, Israel criou uma abertura para os habitantes de Gaza finalmente expressarem sua aversão ao Hamas.
![]() Um típico cartaz anti-Hamas: "chega de deslocamento e de desapropriação. Chega de matança e de destruição. Pare com o derramamento de sangue. |
Suspeição
A maioria dos observadores vê os protestos como movimentos de base, genuínos e importantes. Issa Karim, escritor dissidente de Gaza, relata que, "antes, era impossível, mesmo para os muitos moradores de Gaza que desejavam expressar a sua raiva contra o Hamas. Agora os palestinos estão se sentindo libertados e estão unidos em dizer uma coisa: 'Hamas fora de Gaza'." Ohad Merlin, do Jerusalem Post, conclui que "a barreira do medo que prevaleceu em Gaza por 18 anos de governo do Hamas foi quebrada". Analistas do Washington Institute for Near East Policy consideram sem precedentes a "escala e ousadia" das críticas.
Mas os protestos também geraram uma resposta que levanta suspeita porque, segundo Merlin, "eles eram tão raros e surpreendentes que os analistas tiveram dificuldade em vê-los como espontâneos ou autênticos". Justin Amler, do Conselho para Assuntos Judaicos da Austrália/Israel, adverte que não há razão para acreditar que os manifestantes de Gaza de repente abraçaram "valores de paz, coexistência e democracia". Mas alguns moradores de Gaza se manifestam, junto com um estudante de direito, sobre "paz verdadeira entre palestinos e israelenses" e que eles merecem uma chance de provar a sua sinceridade.
Outros céticos vão mais longe, se perguntando se o Hamas não foi secretamente conivente com os manifestantes. O jornalista israelense Zvi Yehezkeli suspeita que o Hamas permitiu que eles queriam mostrar que não são totalitários, para prolongar as negociações com Israel e obter informações sobre seus opositores. O autor Bassam Tawil, do Gatestone Institute, adverte para que "não nos deixemos enganar pelos protestos 'anti-Hamas'" e vê trapaça: "trata-se daquele mesmo Hamas que ficou sinalizando para todos, anos antes de seus terroristas atacarem Israel em 7 de outubro de 2023, de que não estava interessado em outra rodada de combates". Embora o ceticismo seja saudável, os vídeos revelam uma genuína sinceridade e a resposta assassina do Hamas a confirma.
Implicações
Os protestos em Gaza, na prática, não têm a menor chance de derrubar o intratável regime do Hamas. No entanto, eles têm implicações potencialmente importantes para a política israelense em relação à Faixa de Gaza e, portanto, para o futuro de Gaza. Os comícios mostram claramente, emfim, a existência de moradores de Gaza que desprezam o Hamas. Ou seja, eles efetivamente anunciam a futura equipe de uma administração patrocinada por Israel do tipo que Jerusalém recomendou há um ano: "as questões civis e a responsabilidade pela ordem pública serão baseados em atores locais com 'experiência em gestão'".
Eu chamo isso de uma Gaza decente administrada por moradores de Gaza decentes, onde os israelenses supervisionam uma força de gestão e segurança composta por moradores de Gaza, onde Israel imita o vizinho Egito de não tolerar nenhum desafio à sua autoridade, mas via de regra deixa a população em paz. Tal solução evita duas alternativas extremamente pouco atraentes: o controle direto de Israel ou a continuação do domínio pelo Hamas.
Pelo menos alguns moradores de Gaza entendem o imperativo de influenciar a opinião israelense. Um manifestante, estudante da Universidade Islâmica de Gaza, lamenta que Israel chame os habitantes de Gaza de "animais" e espera que os israelenses parem de dizer "que sete milhões de palestinos são terroristas". Ele e eles merecem uma audiência em Jerusalém e mais além.
Daniel Pipes (DanielPipes.org, @DanielPipes) é fundador do Middle East Forum e autor do recém-publicado livro Israel Victory: How Zionists Win Acceptance and Palestinians Get Liberated (Wicked Son).